Vida de Godard é tema de novo filme de Michel Hazanavicius

'Redoutable' é inspirado no livro de Anne Wiazemsky, ex-mulher do cineasta francês

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Por Sergio Augusto
Atualização:
Imagem de 'Redoubtable', novo filme do Michel Hazanavicius, sobre a vida do cineasta Jean-Luc Godard, que seráinterpretado por Louis Garrel Foto: Studiocanal

“Inqualificável. Iconoclasta. Tóxico. Revolucionário. Engraçado. Genial. Esquerdista. Brilhante. Carismático. Trágico. Adulado. Detestado. Mítico. Político. Visionário. Mordaz.”

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Os adjetivos, em letras sem serifa e cores primárias, piscam na tela sobre um fundo preto, embalados por cordas mozartianas. Lembram os créditos daqueles filmes de Godard de 50 anos atrás. Ao cabo de quase trinta adjetivos, quem aparece em close diante da câmera? Ora, Jean-Luc Godard. Não o próprio, mas um imitador irreprochável: de óculos escuros e um indício de calvície, Louis Garrel é o cineasta redivivo. Até na maneira de falar. 

Eis tudo o que se pôde apreciar até agora do Godard cinebiografado por Michel Hazanavicius em Redoutable, graças a um teaser postado pelo diretor em sua página no Facebook. YouTube complementou o badalo divulgando imagens das agitações de Maio de 68, em Paris, especialmente encenadas para o filme, só que num boulevard de Bruxelas, onde os figurantes locais cobram bem menos euros que os parisienses. Garrel deve ter-se sentido em casa, não porque tenha nascido na capital belga, mas porque já participara daqueles tumultos em Os Sonhadores (The Dreamers), de Bernardo Bertolucci. 

É a segunda homenagem de Hazanavius ao cinema. A primeira, O Artista, era um plágio nostálgico, naif e algo patético de Cantando na Chuva; esta é uma recriação, aparentemente mimética, da vida e da carreira do “redoutable” (temível, terrível) Jean-Luc, da segunda metade da década de 1960 ao final do decênio seguinte. Período conturbado aquele. Para o cineasta, a nouvelle vague e a França. Muita agitação política, crise nas fábricas e nas universidades, passeatas e levantes. A Bastilha da vez foi a Cinemateca Francesa. 

Ainda reinava a calma quando, em 1966, Godard encantou-se com a pubescente pulcritude de Anne Wiazemsky, filha de um nobre alemão e neta do escritor François Mauriac, lançada como atriz por Robert Bresson em A Grande Testemunha (Au Hasard Balthazar). Na primeira oportunidade, convidou-a para seu próximo filme. Anne quase aceitou trabalhar de graça pela honra de dividir com Jean-Pierre Léaud o protagonismo de A Chinesa, no papel de uma militante maoísta, prenome Veronique. Sua mão direita é a primeira coisa que de seu corpo vemos em A Chinesa, entrelaçando-se na mão esquerda de Léaud, diante de uma porta imaculadamente branca. Seu rosto angelical e seus lábios carnudos só aparecem segundos depois, no momento em que Veronique, de suéter amarelo, testa uma conexão com a Rádio Pequim. Au revoir, Anna Karina; salut, Anne Wiazemsky. 

Dezessete anos mais nova que Godard, Anne não resistiu ao jogo de sedução do cineasta, durante as filmagens, e com ele foi morar na rua Saint-Jacques. Casaram-se em janeiro de 1968 e ficaram juntos 12 anos e quatro filmes, entre os quais Weekend à Francesa. Pasolini dirigiu-a duas vezes, nesse período, em Teorema e Pocilga.

Com o casal ainda em lua de mel, Henri Langlois, fundador e guardião da Cinemateca Francesa, foi afastado do cargo pelo ministro da Cultura de De Gaulle, André Malraux. A comunidade cinematográfica em peso ergueu barricadas em favor de Langlois, bagunçou o Festival de Cannes e criou os Estados Gerais do Cinema Francês, réplica dos Estados Gerais da França instituídos pelos revolucionários de 1789. Na mira dos revolucionários de 1968, o ancien régime cinematográfico.

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Contra a tirania de uma indústria de filmes antiquada e mercantilista, levantaram-se os estandartes da liberdade (de criação), igualdade (de condições no mercado exibidor) e fraternidade (entre os “operários da câmera” e a classe trabalhadora). Contaminada pelo radicalismo da hora, a revista Cahiers du Cinéma, antiga plataforma crítica de Godard, abriu mão de cobrir os filmes do circuito comercial e passou a dar voz a cineastas e grupos marginais, martelando duas questões básicas: 1) a que classes sociais serve a produção cultural vigente? 2) que formas de produção lhes são oferecidas? 

O chienlit que se seguiu à destituição de Langlois e sua volta ao comando da Cinemateca foi um turning point político e pessoal para o cineasta e sua musa. 

Irritado com a reação negativa de vários críticos às provocações de A Chinesa e seu “maoismo oportunista”, Godard decidiu abandonar também o mainstream e, em parceria com o militante político Jean-Pierre Gorin e o Grupo Dziga Vertov, partiu para uma série de documentários de produção coletiva em fábricas e outros focos de tensão social. Nos intervalos, agitava nas ruas. Anne ajudava-o a gritar slogans e distribuir panfletos contra as estruturas burguesas. Um dia, ela cansou da dieta agit prop e o casamento chegou ao fim. 

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Depois de abandonar a carreira de atriz, em 1988, Anne, que em maio chega aos 70, tornou-se diretora de produções para a TV e escritora bissexta. O roteiro de Redoutable inspirou-se em seu livro de memórias, Un An Après (Um Ano Depois), editado há dois anos pela Gallimard. Quem a encarna no filme é Stacy Martin, co-estrela de Ninfomaníaca.

O que Godard achou de ser cinebiografado? Entre uma tomada e outra de seu novo filme, Image et Parole, respondeu: “Uma ideia idiota”, repetindo o adjetivo mais duas vezes. “Não quero sequer ouvir falar dessa bobagem, embora, na verdade, esteja me lixando para isso tudo”, acrescentou. 

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