PUBLICIDADE

GUERRA MENTECAPTA

Por Luís Fernando Tófoli
Atualização:

Depois dos atentados em Paris, os meios de comunicação ocidentais trataram de divulgar, com tons variados de sensacionalismo, a informação de que o Estado Islâmico estaria usando uma misteriosa droga chamada Captagon como recurso químico para dar coragem a seus militantes. De maneira geral, os textos apontavam para o perigo do uso dessa, substância que tira a fome e o sono e provê energia aos militantes, os atuais inimigos do mundo como ele é.

PUBLICIDADE

Vale a pena dissecar o que é fato e o que é pânico descabido nessa história. O Captagon foi sintetizado na Alemanha na década de 1960 com o nome científico de fenetilina. Usado, na época, como tratamento de segunda classe para crianças com hiperatividade, é considerada, do ponto de vista farmacológico, um estimulante mais fraco e menos viciante do que muitos que circulam nas prescrições médicas mundo afora.

No entanto, foi adotado pelos consumidores de estimulantes em pílulas dos anos 1970. Quantidades consideráveis da produção oficial de fenetilina eram desviadas para uso recreativo. O abuso da droga, ainda que relativamente pequeno, levou à sua proibição na década de 1980, em um esforço típico do auge da Guerra às Drogas. Depois de 1986, não houve mais produção legal de Captagon no mundo.

No entanto, como é comum quando se fala de substâncias psicoativas com uma demanda estabelecida, a proibição tornou a produção e distribuição de Captagon um negócio lucrativo. Sem controle legal, os comprimidos continuaram com o mesmo nome e aparência, mas tendo como princípios ativos substâncias mais baratas, como cafeína e efedrina. O consumo das pílulas caiu no gosto dos países islâmicos, principalmente os da Península Arábica, e passou a ser alimentado por um circuito envolvendo a produção no Leste da Europa e o seu trânsito pela Turquia.

Recentemente, os fatos ocorridos na Síria modificaram esse cenário. O país era um dos grandes polos de produção farmacêutica do Oriente Médio antes do levante contra o governo Assad. Aparentemente, após a guerra civil, parte desse parque industrial se voltou para a produção clandestina da droga. Também mais ou menos por essa época o estimulante utilizado no Captagon ilegal se estabilizou como sendo, na maior parte das vezes, a antiga e barata anfetamina. Como há indício de que os militantes do Estado Islâmico tanto lucram com a droga quanto a utilizam, foi só questão de tempo para que uma substância psicoativa de nome desconhecido virasse a "nova droga superperigosa" de fanáticos islâmicos.

A relação entre os estimulantes em geral - as anfetaminas em particular - com a guerra tem uma rica e íntima relação. Na 2ª Guerra Mundial, nazistas e aliados contaram com o apoio de anfetaminas para manter soldados alertas e com pouca fome. O Japão teve que lidar com uma considerável população de dependentes dessas substâncias depois do conflito, já que - além dos soldados - trabalhadores eram incentivados a usá-las para aumentar a produtividade. O abuso de anfetaminas ainda é questão importante por lá.

Outra história que se repete aqui, no caso do Captagon, é a associação de uma droga estranha e ameaçadora com um grupo social indesejável. Isso já aconteceu, por exemplo, quando se relacionou o uso de maconha aos mexicanos nos Estados Unidos e aos negros no Brasil, o ópio aos imigrantes chineses e os alucinógenos aos hippies, normalmente em meio a descrições bizarramente distorcidas dos efeitos das substâncias. Nos EUA da primeira metade do século 20, por exemplo, foi atribuída à cocaína a capacidade de prover a homens negros imunidade a disparos de armas de fogo.

Publicidade

Portanto, não é novidade nenhuma, para uma sociedade anestesiada pela ideia de que as drogas são um mal em si e que a melhor forma de vencê-las é o combate militar, que se anuncie que o Captagon transforma terroristas em 'super-humanos', como se lê em recente manchete do

Washington Post.

Não se trata aqui, claro, de minimizar o impacto do abuso do Captagon, que precisa ser abordado de forma lúcida, técnica e serena. Contudo, se a droga ainda fosse legalizada e distribuída de forma controlada, é certo que ela não seria fonte de lucro para o Estado Islâmico.

Aliás, a relação íntima das guerrilhas peruanas e colombianas com a produção de cocaína e o considerável aumento na produção de ópio e heroína no Afeganistão após a invasão americana demonstram que o deletério casamento da Guerra às Drogas com a Guerra ao Terror não é exclusividade do Captagon.

PUBLICIDADE

A discussão sobre a "droga do terror" é certamente marginal diante do problema muito maior e mais complexo do relacionamento entre Islã e Ocidente. Ainda assim, cabe a todos nós, que queremos ver reduzidos os danos causados pelas drogas e desejamos um mundo sem terror, nos perguntar a quem atendem manchetes distorcidas que nos levam à ojeriza automática a todo e qualquer grupo ou fenômeno social que pareça obscuro ou ameaçador.

Os preconceitos estão entre as raízes da proibição das drogas, que mata mais pessoas do que as drogas em si, e da xenofobia, que sabidamente reforça o recrutamento de novos militantes islâmicos. Seria então possível conceber que o questionamento dos preconceitos e suas guerras poderia, um dia, tornar o mundo um lugar mais seguro?

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.