Heroico e racista

Por que, segundo o articulista, devemos apoiar os mártires da liberdade de expressão - mas também criticar o jornal satírico que produziam

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Por Jordan Weissmann
Atualização:
Homenagem ao Charlie Hebdo Foto: Ruben Oppenheimer

Os editores e cartunistas assassinados no ataque de quarta-feira ao semanário francês Charlie Hebdo agora são os mártires da liberdade de expressão. Ameaçados de morte por publicarem charges do Profeta Maomé que zombavam dos radicais islâmicos, eles se recusaram a adotar a autocensura e por isso foram mortos. Morreram bravamente por um ideal que todos nós prezamos particularmente.

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Entretanto, seus desenhos sobre Maomé foram talvez imaturos e racistas. Mas não totalmente; uma charge de capa do profeta prestes a ser decapitado por um energúmeno do Estado Islâmico afirmava claramente que o radicalismo islâmico tem bem pouco a ver com a religião em si. Entretanto, com frequência os cartunistas mostraram o fundador do Islã como um ser desprezível de nariz adunco saído dos pesadelos de Edward Said, aparentemente sem nenhum outro propósito senão hostilizar os muçulmanos que, com ou sem razão, acreditam que retratar Maomé seja um ato blasfemo.

Isso num país em que os muçulmanos são uma minoria pobre e atormentada, vilipendiada por um crescente movimento nacionalista que usa valores liberais como secularismo e liberdade de expressão para camuflar a mais pura xenofobia. Não devemos esquecer que a França é o país em que o conceito da liberdade de expressão não conseguiu impedir que os políticos proibissem o véu e a burca. Charlie Hebdo pode se declarar um semanário satírico que ofende em igual medida gregos e troianos. Mas há boas razões para os críticos o compararem a “uma publicação do poder branco”. Como escreveu Jacob Canfield em uma eloquente mensagem no blog Hooded Utilitarian, “brancos oprimindo minorias não são a receita para uma boa sátira”.

Portanto, o trabalho do Charlie Hebdo era corajoso e muitas vezes covarde. Deveríamos ter em mente essas duas realidades simultaneamente, mas, ao que parece, não conseguimos.

Grande parte do debate que se seguiu ao massacre concentrou-se na seguinte questão: será aceitável para americanos e europeus ofender as tradições muçulmanas? Devemos defender as charges de Maomé com base na liberdade de expressão? Ou devemos desencorajá-las totalmente? Segundo Jonathan Chait, a resposta é óbvia. “O direito de blasfemar contra a religião é um dos exercícios mais elementares do liberalismo político”, ele escreve na New York Magazine. “Não podemos defender o direito sem defender a prática.” O colunista Ross Douglas, do New York Times, concorda. Se um ato de blasfêmia pode colocar uma pessoa numa lista negra, afirma, deveria ser “aplaudido e defendido” como uma defesa dos valores liberais contra a brutalidade.

Mas é errado abordar esse tema como uma questão do tipo blasfemar ou não blasfemar. A liberdade de expressão nos permite dizer coisas idiotas, odiosas, sem sermos punidos pelo governo. Mas abraçar esse direito significa que precisamos admitir quando o trabalho é idiota ou odioso, e não pode ser defendido em si. Precisamos reconhecer, como afirma Matt Iglesias, da mídia digital Vox, que defender publicações como Charlie Hebdo é uma necessidade “lamentável”, em parte porque oferece uma justificativa para uma reação antimuçulmana. “Imagens blasfemas, zombeteiras, provocam sofrimento nas comunidades marginalizadas”, ele afirma. “A elevação de tais imagens a um princípio mais alto aumentará a dor para esses grupos minoritários.” E quanto mais eles forem maltratados, mais crescerá o número dos radicais irados.

Que fazer então? Devemos condenar o racismo óbvio com a mesma energia com que defendemos o direito de abraçá-lo. Devemos enfatizar quando uma charge provocadora não passa de uma alfinetada islamofóbica idiota. Não devemos fazer de conta que toda capa de revista com um desenho de Maomé seja uma segunda versão dos Versos Satânicos. Fazer essas distinções não vai acalmar militantes que se preparam para entrar de arma em punho numa redação. Mas é uma maneira de demonstrar a nossa boa fé aos outros membros de uma comunidade marginalizada, de demonstrar que a liberdade de expressão não significa apenas zombar de sua religião.

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É difícil falar dessas coisas hoje, quando tantas famílias, um país inteiro e uma profissão choram com todo o direito seus mortos. Mas, por outro lado, é também necessário. Neste momento, o Google ofereceu quase US$ 300 mil ao Charlie Hebdo, para que o semanário continue saindo. O Guardian Media Group contribuiu com US$ 150 mil. E o governo da França prometeu mais de 1 milhão. Trata-se de um gesto muito significativo em favor da liberdade de expressão. Mas não estou tão certo de que seja o tipo de expressão pela qual um governo haveria de querer pagar. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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