Sumiu um molho de chaves da sala dos seguranças da Biblioteca Mário de Andrade, a segunda maior do País, e ninguém notou. A luz era frouxa por ali na época (diziam ser a biblioteca onde não se lia), assim como era a vigilância. Numa só argola dependuravam-se as chaves das cinco salas da coleção de livros raros, onde ficam obras como a Suma Teológica de Santo Antonino (1477), as Crônicas de Nuremberg (1493), o Atlas de Mercator (1610). As chaves sumiam na escuridão, ressurgiam depois sem que ninguém desse pela falta, e as noites pareciam seguir sem abalos no prédio modernista do início da Rua da Consolação, centro de São Paulo.
No subsolo, porém, as madrugadas eram preenchidas por um estranho labor. Mesmo que não houvesse trabalho a fazer àquela hora, três homens se reuniam na oficina de restauro do piso -1 e, logo depois, subiam clandestinos à torre principal da biblioteca, onde ficam as raridades. Permaneciam o tempo que quisessem, sem que vigia algum jamais notasse. Foi assim durante meses, naqueles idos de 2006.
Deu-se o alerta numa tarde de fins de inverno, quando uma artista mineira apareceu à procura de Rizio Bruno, coordenador da seção de obras raras. Ela buscava imagens das Minas Gerais do século 19 para uma exposição sobre Aleijadinho, e soubera da expertise de Bruno, 15 anos como chefe do setor. O bibliotecário pediu que esperasse e sumiu entre as prateleiras. Satisfeito, avistou o álbum número 1 de Karl Burmeister, viajante alemão que percorreu o Brasil na metade do século 19, registrando o que via em litografias. Lindas, coloridas, um bom retrato das Gerais dos tempos de colônia. Bruno puxou o livro – e sentiu na barriga uma pontada. O volume estava lá, mas, como ele definiu à polícia depois, “parecia um triângulo”. A lombada de couro estava perfeita, mas a capa encostava na quarta-capa. Tinham retirado o recheio do livro – “a alma do livro”, como ele disse.
Um grande chabu tomou conta da Mário de Andrade. O bibliotecário avisou o então diretor, Luiz Francisco Carvalho Filho, que pediu uma análise detalhada. Bruno virou a noite, e o que descobriu foi um espanto. Dias depois, Carvalho convocou a imprensa para relatar o roubo: sob o olhar dos seguranças noturnos haviam sumido 42 gravuras de Debret, 58 de Rugendas, as litografias de Burmeister, a série Souvenirs do Rio de Janeiro, com 12 gravuras de Steinmann e o livro de Horas Hore Intemerate Beate Marie Virginis, de 1501. Foi o que se divulgou na época.
Descobriu-se agora que, na verdade, o furto foi muito maior. A Mário de Andrade concluiu, no fim de 2015, seu mais completo inventário de obras raras, o primeiro a ser feito desde 1969, e a lista de sumiços extrapola de longe a que foi divulgada dez anos atrás. O furto de 2006 foi o maior da história da biblioteca, fundada em 1925. Além das imagens avulsas e do livro de Horas, outros seis álbuns de gravuras e 13 livros ainda mais raros foram furtados. Sumiram, por exemplo, dois volumes de Luís de Camões – uma edição dos Lusíadas de 1639 e outra das Rimas Várias (1685-1689). Desapareceram as primeiras edições de Chrysalidas (1864), de Machado de Assis, de O Cortiço (1890), de Aluizio de Azevedo e de O Systema Representativo (1868), de José de Alencar. Boa oportunidade para sebos que, segundo a Polícia Federal, costumam atuar em conjunto com criminosos, fornecendo listas de edições que interessariam a colecionadores.
Nunca é o caso de pegar o que aparece na frente. Os ladrões que se reuniam na Mário de Andrade à noite – entre eles, um funcionário de 25 anos de casa – levaram só o que sabiam interessar a colecionistas. Livros de viajantes, por exemplo, sempre têm procura e, por isso, os bandidos carregaram logo cinco, do século 16 ao 19. Entre os que se evaporaram das prateleiras estão um outro exemplar de Burmeister, de 1856, com relatos de viagem e litografias da fauna brasileira (19 imagens de mamíferos, três de rãs e dez esqueletos de animais); um livro de Francis de Castelnau, artista francês que dedicou-se a descrever répteis brasileiros no início do século 19; além de uma raríssima edição de 1585 da vinda de Jean de Lery ao País, “a primeira a trazer impressas as melodias indígenas coletadas no Brasil”, como aponta o relatório de desaparecimento.
Diz-se na biblioteca que são bens de valor inestimável, por se aproximarem de obras de arte, ou por fazerem parte de coleções históricas da instituição – a maioria, compradas do acervo de Félix Pacheco, ou doadas por Paulo Prado, os embriões do acervo raro da Mário de Andrade. Mas, no mercado, é possível saber o valor patrimonial das obras furtadas: os 14 livros raros que sumiram em 2006 valem cerca de R$ 500 mil, segundo um avaliador e bibliófilo, que pediu sigilo de nome. “Tínhamos a esperança de que os livros tidos como desaparecidos estivessem no acervo, mal catalogados ou fora de lugar. Mas descobrimos com esse inventário que, de fato, os volumes sumiram”, disse a atual coordenadora da seção de raros, Joana Moreno de Andrade. “Quanto mais divulgarmos os crimes, maiores as chances de que as obras sejam encontradas.”
No caso do furto de 2006, o caso foi esclarecido, e os ladrões, presos. Como na maioria dos roubos de livros e obras de arte, gente de dentro estava envolvida. José Camilo dos Santos era funcionário da Mário de Andrade desde a década de 1980 e trabalhava como encadernador. Em conjunto com Ricardo Pereira Machado, ex-estagiário de biblioteconomia, e Laéssio Rodrigues, apontado como participante de vários furtos a bibliotecas no início dos anos 2000, planejaram e executaram o crime. Foram descobertos por um vizinho do encadernador Camilo, que viu no noticiário da TV imagens das obras e associou com o que flagrara, pela janela da cozinha, no quintal da casa ao lado. Antes de ser preso, o trio conseguiu comercializar os livros, por meio de uma casa de leilão. Depois eles foram presos por formação de quadrilha e furto qualificado e cumpriram pena. Hoje, estão soltos novamente. As obras furtadas, porém, não foram recuperadas. O 1º Distrito Policial (Sé), responsável pelo caso, diz seguir em busca do paradeiro das obras. Apesar da descrença na busca pelos livros, o furto serviu para modificar o sistema de segurança da biblioteca: em 2007, foram instaladas fechaduras eletrônicas e, em 2011, chegaram as câmeras. Espera-se agora a liberação de verba para colocar fechaduras biométricas em 2017. O velho molho de chaves que vez por outra sumia foi de vez abandonado.
A partir do novo inventário, é possível traçar uma trajetória dos roubos na Mário de Andrade. O primeiro registro de desaparecimento de obras deu-se logo em 1947, ano seguinte à inauguração do prédio, projetado por Jacques Pilon. Numa ficha escrita à mão, anotou-se o sumiço dos Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da Província de S. Paulo, obra de 1879 de Manoel Eufrazio de Azevedo Marques. De lá pra cá, registraram-se no total 34 livros raros furtados, além dos seis álbuns com 14 volumes de gravuras. Ao longo das décadas, a orientação sempre foi manter sigilo e, por isso, as autoridades nunca foram avisadas dos furtos – o temor era que o reconhecimento pudesse atrair mais ladrões. “Com isso, muitas obras nem foram procuradas”, diz a coordenadora Joana.
A lógica foi interrompida por outro furto grave, em 1991. A descoberta da ausência deu-se, novamente, por provocação. Da mesma forma que em 2006 – quando a artista mineira pediu um livro que, afinal, não estava lá – , nessa outra ocasião um pesquisador quis ver obras que mostrassem costumes do Rio de Janeiro do século 19. No catálogo, havia a ficha do raro View and Costumes of the City and Neighborhood of Rio de Janeiro, em que o tenente inglês Henry Chamberlain descreve, em 31 desenhos coloridos, sua passagem pelo Rio em 1819. Alguém foi destacado a desenterrar a obra e o resultado foi novo ataque histérico. No local indicado, nada do exemplar. Uma força-tarefa foi armada para vasculhar o acervo, mas, em vez de encontrar o volume, os funcionários deram pela falta de outro livro raro: Ornithologie Bresilienne, obra com 48 gravuras de pássaros brasileiros desenhadas por Jean Theodore Desourtilz em 1852, quase tão valioso quanto. Sabia-se que eram obras caras e o baque foi grande a ponto de resultar, pela primeira vez, em boletim de ocorrência por sumiço de livros na Mário de Andrade. A investigação, porém, deu em nada. Os livros sumidos em 1991 são dois dos volumes mais caros já subtraídos da biblioteca (o primeiro, avaliado em R$ 230 mil, e o segundo, em R$ 150 mil). Do paradeiro deles, nem pista.
Nem só de ausências, porém, foram feitos os 14 meses de levantamento do novo inventário de obras raras. Houve descobertas interessantes. A começar pelo número exato de raridades da Mário de Andrade, que nunca se soube ao certo antes desse trabalho. Os bibliotecários cravavam 52 mil livros quando perguntados, número que nunca mudava. Hoje, sabe-se que são 55 mil. Três mil “descobertas”, portanto – curiosos e ratos de biblioteca perguntariam, ávidos, quais magníficos tesouros, afinal, ressurgiram da escuridão? Bem, alguns. Como o livro de 35 litografias que acreditava-se ser apenas de Antonio Bonadei, mas que, na verdade, reúne a obra de cinco artistas, inclusive Livio Abramo, Clóvis Graciano e Nonê, filho de Oswald de Andrade. Agora esse livro está lá, devidamente catalogado, e deve fazer parte de exposição do acervo raro, no segundo semestre. Assim como um dos primeiros trabalhos de Marcelo Grassmann, um álbum de gravuras de 1949, que causou surpresa quando encontrado. “Nem mesmo os familiares do artista conheciam. É o que um mergulho como esse permite: redescobrir e cada vez mais divulgar um acervo público”, diz o diretor da biblioteca, Luiz Armando Bagolin. “É parte da nova política da biblioteca, que quer cada vez mais se abrir para a sociedade e para os leitores.”
Por enquanto, a bem-intencionada política vem trazendo resultado incerto: há cada vez mais teatro, cinema, apresentações de chorinho na Mário de Andrade, com presença de fato expressiva (54 mil pessoas assistiram a 754 eventos na biblioteca em 2015, ante 6 mil pessoas que viram 110 apresentações em 2012). Mas isso ainda não se traduz em mais leitores. No ano passado, 68 mil livros foram emprestados, diante de 77 mil em 2012 – queda de 12%, mesmo com mais eventos realizados. “Essa é uma tendência nas principais bibliotecas do mundo, mesmo as mais eruditas, que têm feito até visitas guiadas para crianças”, diz a historiadora Marisa Midori, professora da USP, especialista em história do livro. “O que importa é trazer as pessoas para dentro das bibliotecas. A mais longo prazo, resultará também em maior público leitor.”
Popularidade por popularidade, por enquanto, a seção de obras raras fica lá na rabeira: média de um pesquisador por dia visitou o setor em 2015. Não atrapalharam, portanto, o trabalho de levantamento dos últimos meses. E, enquanto se dava o arrastar dos carrinhos de metal, da torre à sala de consultas, e da sala de volta à torre, os bravos bibliotecários fizeram lembrar a história de Calímaco de Cirene, criador do que muitos consideram o primeiro catálogo de obras literárias do mundo – o da lendária biblioteca de Alexandria, da qual o grego era diretor. Para justificar a excentricidade, dizia querer anotar todos as obras num só livro para, assim, ter nas mãos “um livro de todos os livros”. Algo que agora a Mário de Andrade também pode gabar-se de ter: estão listados em 11 volumes todos os 55 mil livros raros da principal biblioteca de São Paulo. O documento foi enviado a três órgãos: ao Iphan, para tombamento, lógico. Lembraram também de enviar os volumes à Polícia Federal e à Interpol. Os Calímacos da Mário de Andrade ainda mantêm a esperança de recuperar o que se perdeu.