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Icônica carcaça

Por trás da imponente fachada, as lendas e histórias que mantêm vivo um símbolo carioca hoje abandonado

Por Eduardo Goldenberg
Atualização:

O Rio de Janeiro, icônica cidade brasileira, a Cidade Maravilhosa, é o que é hoje, uma das mais belas cidades do planeta, apesar de todos os pesares que, ao longo de seus 450 anos de história, a vitimaram. Pesares que são como flechas cravadas no peito de seu padroeiro, São Sebastião, louvado no dia 20 de janeiro. Flechas que, ironia das ironias, são diariamente retiradas do peito ferido da cidade, num movimento permanente, num ciclo quase esquizofrênico, de descobrir e esquecer, construir e destruir, morder e depois assoprar e, por fim, lamber os próprios lábios ciosa de sua importância e seu significado. A Cidade Mulher.

  Foto: MARCOS DE PAULA | ESTADAO CONTEUDO

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São muitos, os pesares. Muitas, as perdas. Mais recentemente, quando já não era a capital da República Federativa (para muitos, deixar de ser capital federal significou o início de um desmonte, de uma decadência que, convenhamos, nunca chegou a ser efetiva), perdemos – dizem os mais puristas – o Maracanã. O bom e velho Estádio Mário Filho, amplamente reformado com a Copa de 2014 no Brasil, deixou de ser, na visão desses puristas, o bom e velho Maracanã. Eu, e talvez seja excesso de otimismo de minha parte, não concordo com isso. O Maracanã, vá lá, perdeu um pouco do seu charme quando perdeu a geral, as arquibancadas de concreto, a faceta popular que o caracterizava como o Maior do Mundo. Mas, eis aí a corda na qual me agarro, jamais deixará de ser o gigante que se calou em 1950 porque é ali, às margens do rio Maracanã, vizinho da Estação Primeira de Mangueira e do Boulevard 28 de Setembro, a avenida que corta o bairro de Vila Isabel, que estão plantados, para todo o sempre, o axé e os fundamentos que fazem com que permaneça, intacta, a lenda que atende pelo nome de Estádio Mário Filho.

O mesmo ocorre – e o tema me vem por conta de mais uma operação de venda de um edifício histórico no bairro da Glória, zona sul, e que hoje é apenas escombro e saudade – com o Hotel Glória, primeiro prédio inteiramente construído em concreto armado da América do Sul e o primeiro a receber a classificação de cinco estrelas no Brasil, inaugurado em agosto de 1920 visando aos festejos de 1922 pela passagem do primeiro centenário da Independência. Foram três os hotéis construídos nesse mesmo período da efeméride (o Hotel 7 de Setembro, o Copacabana Palace e, justamente, o Hotel Glória) que foi a Exposição do Centenário da Independência de 1922.

E, se o Copacabana Palace foi documentado à altura (e está vivo, ainda lá, na Av. Atlântica), o 7 de Setembro e o Glória não mereceram o mesmo zelo quanto à preservação de sua memória.

Fechado em 2000, dois anos depois da morte do paulistano Eduardo Tapajós (que o adquirira em 1949), o Hotel Glória, já em franca decadência, foi vendido para os grupos econômicos capitaneados pelo empresário Eike Batista em 2008. Este, com altas doses de megalomania, pretendia reformar o hotel para devolvê-lo à cidade, glorioso e altaneiro, para a Copa. Mas Eike também experimentou a decadência muito antes de dar início às reformas. Resultado? Houve tempo, apenas, para derrubar o Hotel Glória, mantendo sua fachada inteiramente intacta, uma triste carcaça. Hall, corredores, quartos, a suntuosa piscina, as escadarias, os seis painéis pintados na década de 60 pelo ceramista português João Martins, tudo foi impiedosamente destruído pela sanha dos delirantes compradores do hotel. A velha força da grana que ergue e destrói coisas belas.

Paira no ar, entretanto, que o que restou do Hotel Glória será posto à venda mais uma vez. Isso porque Eike já vendera o hotel a um fundo de investimento suíço que, por sua vez, desistiu do negócio e, após formalização de um acordo, manteve o imóvel nas mãos do empresário.

Mantenho, pois – era o que queria lhes dizer –, com relação ao Hotel Glória a mesmíssima postura de esperança e fé que tenho com o Maracanã. O axé (ou a energia vital, como queiram os senhores e as senhoras) do Hotel Glória ainda está lá, em meio à carcaça malcuidada e por trás dos tapumes que guardam os escombros abandonados por quem pretendia reerguê-lo.

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O alarido dos congressos, das formaturas, da boate Béguin (pronunciava-se beghèn, nos conta Ruy Castro em A Noite do Meu Bem, Companhia das Letras), que teve como primeira estrela Dolores Duran e por onde passaram Dick Farney, Johnny Alf, Garoto, tudo continua lá. E a barbearia, que teve como cliente, ainda menino, o legendário carioca Álvaro Costa e Silva – e me permitam contar-lhes uma história.

Dentre as lendas que cercam o Hotel Glória, uma envolve justamente Álvaro Costa e Silva, o Marechal, e a estrela Ava Gardner, estrela da mais alta grandeza do panteão de Hollywood.

Corria o ano de 1954 e Getúlio Vargas já havia se suicidado (no Catete, a poucos passos do bairro da Glória). Ava Gardner veio ao Brasil, trazida pela United Artist, para promover seu mais recente filme, A Condessa Descalça.

O primeiro contratempo deu-se já no aeroporto. A multidão que a aguardava rompeu a barreira policial e invadiu a pista. Na primeira entrevista, ainda no saguão do aeroporto, Ava reclamou do que chamou de “mãos bobas” dos cariocas que, afoitos, não seguraram a linha diante do “mais belo animal do mundo”, epíteto cunhado por Jean Cocteau, poeta e cineasta francês.

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O segundo contratempo foi no próprio Hotel Glória, que fora reservado para a estrela. Lá chegando, Ava, contrariada, alegando não ter gostado de suas instalações, exigiu ser transferida para o Copacabana Palace.

É aí que entra Álvaro Costa e Silva, que até hoje sente saudade dos tempos de ouro do Glória. Saindo da barbearia do hotel naquela tarde de 1954, Alvinho, ainda um menino, impressionou-se com a beleza brutal de Ava Gardner. Não se conteve. Repetiu, sozinho, o gesto da multidão que tanto irritara Gardner no aeroporto. Foi, é o que ele jura, determinante para que ela exigisse trocar o Glória pelo Copacabana Palace.

Lendas e histórias. Isso, não há quem destrua.

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EDUARDO GOLDENBERG É ADVOGADO, MORADOR DA TIJUCA E AUTOR DE MEU LAR É O BOTEQUIM (CASA JORGE EDITORIAL)