Identidades rompidas

Seis meses depois do colapso da barragem da Samarco, os desalojados pelo desastre têm de viver sob olhares tortos e acusações de oportunismo – e bem longe do que antes chamavam de casa

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Por Guilherme Mendes e BENTO RODRIGUES (MG)
Atualização:

O Antônio Marcos, marido da Sônia, abre o Whatsapp. Fuça aqui e ali e coloca o aparelho no ouvido. Dali a pouco, salta um áudio acusando gente como ele de oportunismo. “Pessoas que não tinham um barraquinho de lona hoje têm tudo”, exclama a voz, que se identifica como de funcionário da mineradora Samarco. “Não tem ninguém desabrigado, tem casa com três, quatro banheiros. Eles estão bem”, reafirma. A casa onde moravam em Bento Rodrigues (MG) era tão normal como todas as outras, com quintal, cozinha, dois quartos, lavanderia, Uno 96 na garagem, essas coisas. A casa onde vivem agora, na zona urbana de Mariana, está inacabada, quase não pega sol, não tem quintal – e já não é mais dele. Antes da lama, depois da lama.

Sônia balança a cabeça depois de ouvir aquilo mais uma vez. “Eles querem nos colocar como se fôssemos culpados de a barragem estourar”, diz. “Não fomos nós que construímos nossas casas embaixo da barragem, mas a barragem que foi construída em cima delas.” Não que a discriminação venha de todos, diz a Sônia, mas a mesma pele que mergulhou naquela lama agora sente o preconceito de muitos conterrâneos.

  Foto: ESTADAO CONTEUDO

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Como quando saiu num jornal local (o Ponto Final) o artigo em que um cidadão acusava os desabrigados de extorquir a empresa, já que os outros moradores da região “tinham uma vida com dificuldades financeiras e muito desemprego, com casas ruins e quase sem mobílias”? A Mônica se revoltou. Pegou ela própria da caneta e escreveu um artigo em resposta, ainda naquele mês de janeiro, com o título “Não somos mendigos pedintes nem desonestos”. Na descrição, se definiu como “simples moradora que amava aquele lugar e a vida que levava”. Aquele lugar que hoje não existe mais.

Quase seis meses depois do colapso da barragem da Samarco em Bento Rodrigues, distrito na zona rural de Mariana, a cerca de 100 km de Belo Horizonte, os desabrigados pela lama se veem em território hostil. Em um município movido pela mineração – e onde a Samarco sempre foi admirada por empregar parcela significativa dos 60 mil moradores – eles são, aos olhos de alguns, um estorvo. Segue o áudio no celular do Antônio: “Eles querem dinheiro. Só querem encher o bolso, e o povo que se exploda”, intima o narrador, na fala de seis minutos vazada no mês passado.

Antônio Marcos vira um copo de café. Vice-presidente da associação de moradores do bairro, o pedreiro de 43 anos não estava em casa na hora do desastre. Ao ver do alto do morro o que acontecia, achou que sua família estivesse morta – claro que não pensou no bolso. Correu ao primeiro bairro no caminho da lama e salvou quantas pessoas pôde.

Lá embaixo, naquele 5 de novembro de 2015, a esposa dele, Sônia Xisto dos Santos, de 37 anos, se esforçou para evitar que o tsunami vermelho escuro a levasse e a seu filho, o Juninho, de 16 anos, até o fundo do rio Gualaxo do Norte, enquanto via sumir o bairro onde sempre viveu. Nadando contra a correnteza, agarrada num muro que desabara, ela sobreviveu – e agora se debruça sobre a mesa, onde há nada além de uns copos americanos, um prato com bolachas e uma velhas fotografias tiradas da lama.

Antônio ri das fotos do casamento, lá de 1999. “Cara, casei bêbado”, conta, observado pela mulher – e se explica. “Bebi umas cervejas, fazia calor, eu de terno, aí subiu e fiquei tonto”, cai na risada, segurando o que sobrou da foto, quase toda apagada pela lama tóxica. Não sobraram documentos, roupas, nem animais de estimação. Os únicos elos da família com o passado são as fotos queimadas. Pensar em encher os bolsos, agora, está fora de cogitação.

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  Foto: ESTADAO CONTEUDO

Desalojados como eles pairam entre a melancolia e a esperança. Relegados a um noticiário que envolve valores a serem pagos e indenizações, a tristeza deles passa, principalmente, por algo bem longe disso: a memória de um bairro de 300 anos levada em pouco mais de 10 minutos, ou enterrada sob uma camada de barro, por erros de uma mineradora instalada ali perto há 39 anos.

Hoje, com a casa destruída e morando de aluguel, Sônia e Antônio decidiram arregaçar as mangas. A associação em que ela trabalhava, responsável por produzir geleia de pimenta biquinho voltou à ativa depois de cinco meses, num galpão alugado. O Antônio, pedreiro de formação e designer por hobby (o notebook com seus projetos e desenhos se perdeu na lama), não teme o futuro: “Não falta trabalho pra quem quer”.

Mudou tudo. A meio quilômetro dali, na rua Bom Jesus, a Mônica estranha as noites na nova casa, um apartamento cheirando a novo – e que é chocho e sem alma. Na sala não há fotos; não há os pés de manga dando sombra no lado de fora e nem mesmo o banco de mármore onde ela se deitava em noite quente.

Assim como o casal Antônio e Sônia, Mônica é uma das 800 pessoas desabrigadas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, e que foram realocadas na zona urbana, a 25 km do que era casa. A cidade, conhecido polo de minérios desde os idos de Tiradentes, agora é lembrada pelo vazamento de 55 milhões de m³ de lama, pelos estragos ambientais impossíveis de calcular na bacia do Rio Doce e no mar, e pelas 19 mortes do maior desastre ambiental do País.

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Tão resistente como as marcas da lama são as memórias na vida dos afetados: todos têm problemas para dormir, alguns ainda sonham com a tragédia. Uns ouvem o estrondo da barragem, outros sentem a lama no corpo. Mônica sonha com a avó que já morreu. “E tenho que fingir que estou forte para os parentes. Se demonstrar sentimento, não sei o que acontece”, intervém Maria das Graças Quintão, 59, nascida e criada em Bento Rodrigues.

Maria só tem a filha, a Mônica. Enquanto conversávamos, a Mônica dos Santos, 30 anos, forte como a Diadorim do Guimarães Rosa, parecia entorpecida, batendo no vidro de um pequeno aquário em cima da mesa de jantar. A noite caía e ela estava hipnotizada por chamar a atenção de um peixe Betta azul-marinho, desses de saquinhos na feira. O nome do bicho foi escolhido pela dona, uma prima de dois anos – e o porquê de ele se chamar Bento é algo que só mesmo criança explica.

É como aquela música do Milton: quando Bento Rodrigues se foi embora, fez-se noite no viver das mulheres fortes de lá. Dona Sônia não tem coragem de voltar à antiga vizinhança: forte ela é, mas não tem jeito, ela teria de chorar. Já Mônica e Maria das Graças olham as luzes da zona urbana pela janela, mas não se sentem ali. Aquela casa não é delas, e nem é delas aquele lugar. Estão sós e não resistem – muito têm para falar.

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E falam muito quando o papo embica para a empresa que se instalou perto de Bento Rodrigues no fim dos anos 70, Mônica sai do torpor do peixe de aquário. “Eu ODEIO a Samarco. Odeio”, protesta. A mãe faz coro: “como eu ia receber 15 pessoas pro Natal, cozinhar pra todos numa mesa como essa dada por eles?”, apontando uma pequena mesa na cozinha. “Por isso fui na loja e comprei essa mesa maior pra servir todo mundo”, afirma, já apoiando as mãos em um aparelho maior na sala. Vida que segue.

Na quinta em que a lama triturou o que ela tinha, a Mônica saiu com a mãe para trabalhar logo cedo – ela no consultório de dentista onde é auxiliar, a mãe no serviço público. Ambas só conseguiriam voltar às ruínas do bairro 25 dias depois, junto de bombeiros e de uma equipe da Globo. A mãe ainda lembra de como as duas ficaram mais de um mês num hotel. Só puderam passar o Natal naquele apartamento por ordem judicial, que obrigou a empresa a pagar o aluguel do imóvel.

Antes acostumada às noites estreladas e a lidar com os animais de uns tios, a Mônica agora age como muitos: volta do trabalho, assiste à TV e mexe no celular. Até dormir. Ficam os três – Mônica, Maria e Bento, o peixe – trancafiados no apartamento. É pago pela mineradora – mas pergunte se elas veem vantagem.

O espantoso é que, passados seis meses, a crítica de Mônica e da mãe não seja unânime. A Samarco tem dos seus defensores mesmo onde não se imagina: a posição de Antônio, dada aquele dia vivido por ele e sua família, surpreende. Quando perguntado se aceitaria a volta da Samarco à Mariana, ele não faz cerimônia. “Só não peça pra que eu me manifeste. Vou fazer um manifesto pra uma causa que é minha, mas me prejudicou? Que quase matou minha família?”

De sua parte, a Samarco fala – mas só “por meio de nota”. Afirma que “mobilizou todos os recursos, humanos e financeiros, para atender às emergências”, e que “as famílias recebem um cartão de auxílio financeiro e são acompanhadas para que possam retomar o trabalho”. Entre os afetados que ouvi, quase todos elogiaram os trabalhos da mineradora. Aos moradores, foi cedido um cartão com R$ 880, mais 20% de um salário por dependente, além dode uma cesta básica. Todos os desabrigados em Bento Rodrigues já foram realocados em casas na cidade.

Os elogios de alguns desabrigados e a crítica dos moradores à suposta “extorsão” sofrida pela empresa dão crédito à empresa eleita a melhor do seu setor no Brasil e uma das 500 melhores do País para se trabalhar, segundo a Exame. “Não digo o mesmo da Vale, mas a Samarco sempre teve um relacionamento próximo com a cidade”, afirmou o Tenente Freitas, vereador e presidente da Câmara Municipal de Mariana. Pouco depois da tragédia um grupo de moradores articulou o movimento “Justiça Sim, Desemprego Não”, que no fim de março apresentou 15.236 assinaturas a favor da companhia. Por lá, está assim.

Quase sem pontos turísticos, de comércio apenas local, vêm das mineradoras Vale e Samarco cerca de 90% da arrecadação de Mariana, por meio de royalties da extração. Com as operações da primeira reduzidas, e da segunda embargadas, o montante recebido pelo município, que chegou a R$ 30 milhões em dezembro, caiu para R$28 milhões em fevereiro. Em março, um tombo de 48% fez cair para R$15 milhões.

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A queda pode piorar: não apenas os royalties mantêm a conta no azul, como os moradores precisam dos salários. Mercados, padarias, lojas vão esfriando e a roda da economia espanou.

Ainda em março, a Câmara aprovou a liberação dos fundos aos desabrigados. O primeiro lote, de R$ 800 mil, vai para chefes de família que perderam tudo – o que garantiria uma Páscoa mais decente. Outros R$ 350 mil estão guardados. Muitos não sabem o que fazer com o dinheiro, como Sônia e Antônio. Querem investir no “Novo Bento”, bairro que a mineradora concordou em criar para os moradores, na mesma região – longe do bairro antigo e das barragens ainda existentes.

O velho Bento não existirá mais. As ruínas continuam lá e formam uma espécie de memorial da lama, vila coberta por uma cepa brilhante, sem previsão de ser demolida – antes, é preciso conter a lama que ainda vaza da barragem. A empresa diz que são só rejeitos de ferros levados pela chuva e que construiu três diques para frear o fluxo.

Já o bairro novo está em estudos. O que há no local, a 15 km da cidade, é uma baixada seca, com umas árvores finas. Quem aponta a imensidão desabitada, de dentro do carro, é o Jefferson Inácio, emontador de andaimes de 28 anos, que não tira da cabeça, mais do que o valor de indenização, a vida que tinha antes. Numa sequência de sinuosas curvas na estrada de terra, um subir e descer de montanhas, ele pisa fundo com seu Kadett 1990, vidro trincado e velocímetro travado em 0 km/h, ouvindo sertanejo no DVD. Na metade da estrada, ficará o novo Bento. E no fim dessas curvas, mais uns 10 quilômetros pra baixo, em um vale, fica a “velha” Bento, local que ele se acostumou a visitar nos fins de semana.

Com a calma dos mineiros de estereótipo, ele vai se abrindo: “dia desse mesmo nós voltamos, trouxemos um cooler com cerveja e ficamos aqui sentados e conversando”. As visitas dependem de autorização, então Jefferson vai pelas beiradas: manobra o carro no outro lado do rio, tira o tênis e enfia os pés na água vermelha de rejeitos. A lama bate no joelho, o fundo é movediço, mas pé ante pé ele ruma à outra margem.

Lá ele sempre dá uma volta pelo bairro, calado, meio sem rumo e fugindo dos vigias. Descalço – pisando em colchões, brinquedos, coisas abandonadas às pressas – ele anda por dentro das casas antes habitadas por conhecidos, hoje com lama seca na altura do peito. Subimos a escada coalhada de pedras do rio, e estamos então em uma das poucas lajes que ficou em pé. O silêncio de Jefferson dá a impressão de que percorre um bairro sem salvação, um cemitério de histórias. Com uma naturalidade meio estranha, ele aponta os cômodos da casa, que agora lembra uma planta baixa – há paredes, mas não telhado. “Aqui embaixo tinha um fogão à lenha, aqui era a cozinha e ali era onde minha mãe guardava umas roupas que vendia ali na loja da frente.”

“E aqui em cima, você lembra?”, pergunto.

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“Aqui era meu quarto, e ali outro que fiz pra mim também. Eu dormia aqui”, aponta para as paredes que, como o bairro todo, foram carregados lamaçal abaixo.