Inocuamente heroico

Jon Stewart, que se despede da TV, fez os americanos rirem com a falsidade e a estupidez em lugar de se indignarem com elas

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colunista convidado
Por Lee Siegel
Atualização:
Pssst! Rotina era mostrar políticos falando besteira e fazer cara de zombaria Foto: HUFFINGTONPOST.COM

Algumas semanas atrás ocorreu um fato que pareceu abalar os alicerces da democracia americana. Jon Stewart anunciou que ia sair de seu programa humorístico, The Daily Show, em algum momento antes do fim do ano. Foi como se alguém tivesse sequestrado Barack Obama para pedir resgate.

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Quase imediatamente, surgiram milhares de comentários. Escritores reviram os 16 anos de Stewart como apresentador do programa e declararam que ele teve um efeito revolucionário na cultura. Outros lamentaram que ninguém mais terá coragem e integridade suficientes para ocupar o lugar de Stewart. Outros ainda atribuíram a ele a manutenção da honestidade no país. Disseram que os políticos mais poderosos o temiam. Quase todo o mundo sugeriu que Stewart era tudo que se erguia entre a democracia e o mergulho nas trevas políticas. Stewart foi instantaneamente comparado com o apresentador de noticiário de TV Brian Williams, recentemente exposto por mentir sobre sua presença num helicóptero que fora alvo de ataque no Iraque. Stewart, disseram os entendidos, era herói, e Williams, um covarde desonesto. Um articulista chegou a implorar que Stewart concorresse à presidência em 2016.

As pessoas pareciam estar falando de Gandhi ou Martin Luther King, não de um comediante de televisão. O curioso é que se você perguntasse a alguém que não fosse da mídia sobre a decisão de Stewart, ele apenas daria de ombros. Apesar de os comentaristas aduladores gostarem de assinalar que cada vez mais pessoas obtinham suas informações nas falsas reportagens do Daily Show, o fato é que, em seu auge, o programa atraía 2,5 milhões de espectadores por noite, enquanto 22 milhões assistiam a um dos três programas noticiosos noturnos de redes dos quais Stewart estaria supostamente tirando audiência.

Mas o pensamento grupal histérico que recebeu o anúncio de Stewart vinha existindo quase desde a concepção de seu programa. Na melhor hipótese, ele podia ser incisivo, engraçado e refrescantemente veraz sobre as mentiras e incompetências em Washington. Mas sua rotina consistia, sobretudo, em mostrar clips de políticos dizendo besteiras ante as quais Stewart fazia uma cara de zombaria e dizia alguma coisa sardônica. Não surpreende que a maioria de seu público fosse de universitários.

O surgimento do programa de Stewart coincidiu, porém, com a ascensão da internet, que pareceu dar poder a públicos mais jovens que não tinham a menor fidelidade à mídia tradicional e tinham um desprezo crescente pela autoridade – em especial depois de Bush ter aparentemente fraudado a eleição presidencial de 2004 e depois que a mídia convencional foi engambelada para pensar que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, o que acarretou a desastrosa invasão do Iraque em 2003. O programa de Stewart chegou em 1999, mas só virou sensação depois desses dois eventos. Após toda aquela falsidade, ali estava alguém falando a verdade ao poder!

Ao cumular de elogios tudo que Stewart dizia, a mídia convencional esperava se redimir de sua aparente cumplicidade com o poder corrupto. Ela poderia também estar tentando recuperar os públicos mais jovens que haviam afluído para o programa de Stewart. Os últimos 16 anos ofereceram o espetáculo contínuo da mídia convencional beijando o traseiro de Stewart e mantendo os lábios ali. 

Para quem que não tinha uma agenda a seguir, a adulação a Stewart era extremamente irônica. Mesmo para quem fosse liberal por convicção era penoso assistir a Stewart repetindo platitudes liberais até a exaustão. Era frustrante ao extremo vê-lo comprazer seu público liberal alienado, mesmo se apresentando como um iconoclasta que marchava num ritmo diferente. Era deprimente vê-lo ser idolatrado por jornalistas brancos de meia-idade que temiam por seus empregos, apesar de parte de sua rotina ser ironizar continuamente jornalistas brancos de meia-idade. O próprio Stewart era branco, de meia-idade e privilegiado, mas ninguém jamais pôs isso em pauta.

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A ironia final era que, se alguém ousasse criticar esse baluarte da liberdade de expressão e arauto da verdade libertadora, seria imediatamente espinafrado, aviltado, injuriado e acusado de toda sorte de má-fé. 

Na primavera de 2004, fui o primeiro a tentar oferecer algo como uma avaliação objetiva de Stewart. Propus que ele não era muito engraçado, já que ridicularizar pessoas não é exatamente cômico. Sugeri que ser um humorista em 2004 e zombar do universalmente desprezado – entre seus espectadores – George W. Bush não era como ser um humorista em 1938 e zombar de Joseph Stalin. Argumentei que a catarse proporcionada pela comédia aplicava-se à arte, não à política, e se você quisesse causar mudanças em política, precisava ser irado e permanecer irado.

Escrevi esse artigo para uma coluna de TV que fiz online para uma revista nacional. Cerca de uma hora após o aparecimento do artigo, o servidor da revista empacou sob o peso dos comentários que se seguiram. Eu diria que cerca de 120% eram hostis. Fui insultado e injuriado até as raias da calúnia. Alguns comentadores chegaram a me ameaçar. Um ia “descobrir onde Siegel mora”. Eu nunca tinha visto algo como aquilo. Entendia que, se a admiração a Stewart era racional e baseada em algo concreto, como o talento de Stewart, qualquer crítica a ele também seria recebida de maneira racional. Mas aquilo foi como criticar o fundador de uma religião. Eu poderia perfeitamente ter sido um cartunista em Riad satirizando o Profeta Maomé.

O tempo passou e escrevi um livro sobre a internet. Como era de se esperar, Stewart me convidou para seu programa. Tive um mau pressentimento. Eu havia escrito um segundo artigo negativo a seu respeito – como poderia resistir? – e ele certamente conhecia os dois àquela altura. Senti que ia tentar me desacreditar, ou ao menos me humilhar, já que seu modus operandi era de confrontos cuidadosamente encenados. Mas meu editor, compreensivelmente ansioso de me fazer comparecer ao popular programa de Stewart, onde livros mencionados supostamente se tornam best-sellers, não toleraria meu ceticismo. “Sei tudo sobre Stewart”, meu editor me assegurou. “Seu produtor executivo está escrevendo um livro para mim e ele me disse que Stewart na verdade é um bom sujeito.”

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A noite fatídica chegou e um carro chique veio me apanhar, com minha mulher, em nosso apartamento no Brooklyn para nos levar ao estúdio de Stewart, no lado oeste de Manhattan, perto do rio. Stewart veio à chamada sala verde, onde os convidados de um talk show aguardam a vez de entrar, para fazer sua saudação ritual aos felizes convidados. Ele não foi particularmente cordial e eu tive de novo um mau pressentimento. Quando ele saiu, virei-me para o editor do meu livro e disse: “Diga ao Stewart que você está muito contente porque o produtor executivo dele está escrevendo um livro para você”. “O quê?”, exclamou o editor, “não, isso não é preciso.” “Vá e diga a ele”, insisti, “senão, não vou ao programa.” Ele me encarou, mas saiu da sala verde. Eu o segui até a porta do camarim de Stewart para ter certeza de que ele havia entrado. Quando pisei no palco e me sentei diante de Stewart, notei, com alívio, que estava me olhando de uma maneira totalmente diferente.

Stewart me tratou com elegância e respeito naquela noite, e sou-lhe grato por isso. Poderia ter me estraçalhado. Mas sua civilidade não teve nada a ver com um senso de justiça (naquele contexto, ele tinha todo o poder). Ele estava pisando em ovos por causa de seu amigo e colega profissional, o produtor executivo. Saí impressionado com seu senso de tato – e mais convencido que nunca de que sua “veracidade” era nada mais nada menos que o produto de uma bem-sucedida e popular rotina.

Dezesseis anos se passaram e nada mudou na vida pública. Ao contrário, os políticos são mais desonestos e a própria desonestidade se tornou uma espécie de estilo público. Stewart deu legitimidade a um cinismo universal sobre política, ao mesmo tempo transformando a política em mais um braço do entretenimento. Ele ensinou os americanos a se divertirem com a falsidade e a estupidez públicas em vez de se indignarem com elas. 

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Stewart desancou constantemente como desonesta e corrupta a imprensa masoquista que o idolatrava, mas, na verdade, a celebração calculada e interesseira que essa imprensa fazia dele era o que havia de mais desonesto e corrupto nela. Fico contente que ele esteja saindo.

O que não significa que eu não iria ao seu programa de novo, antes que ele saia. Se a veracidade tem suas vantagens profissionais, também tem seus limites. Como o próprio Stewart seria o primeiro a lhes dizer. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

LEE SIEGEL É ESCRITOR E CRÍTICO CULTURAL AMERICANO. ESCREVE PARA THE NEW YORK TIMES, THE NEW YORKER E THE NATION

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