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Legado ambivalente

Fim da monarquia trouxe a urbanização, mas também repressão e falcatruas políticas

Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:
Novos atores. A Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo, em imagem de 1898 Foto: GUILHERME GAENSLY

Enquanto a cidade dormia o Largo do Paço foi teatro de cena triste (...) Às três horas da madrugada o carro parou e o Sr. D. Pedro apeou-se para pisar pela última vez a terra pátria

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No dia 15 de novembro de 1889, no calor da hora, Raul Pompeia publicou o trecho acima. Melancólico, o escritor que havia encabeçado duras críticas ao imperador, agora entrava no coro dos que denunciavam o que ficou conhecido como “o golpe da República”. A sensação era dúbia e combinava esperança com um sentimento difuso de culpa e receio.

O fato é que, enquanto o imperador partia para o exílio, no Brasil alteravam-se nomes e símbolos. O Largo do Paço passou a se chamar 15 de novembro; a Estrada de Ferro Pedro II, Central do Brasil; o Colégio Pedro II, Colégio Nacional, e assim por diante. Os motivos impressos no papel-moeda também foram alterados: sai D. Pedro II e a monarquia, entra a imagem da República dos Estados Unidos do Brasil. 

Uma nova lista de festas nacionais substituiu antigas datas: vieram o 13 de maio, “a fraternidade dos brasileiros”; o 15 de Novembro, a República; o 21 de abril, “os precursores”. Nesse último caso, ressuscitava-se a figura de Tiradentes, líder da Conjuração Mineira de 1789, agora transformado em republicano. Porém, como se desconheciam retratos do herói, ele foi associado de forma crescente à figura de Cristo: olhar cândido, vestes brancas, crucifixo ao peito, cabelo soltos batendo nos ombros. Suprimiram-se ainda os títulos de nobreza, conservando-se, no entanto, os nomes. José Maria da Silva Paranhos, o Barão de Rio Branco, herdara o título do pai. Já em tempos de República, abandonou o termo de nobiliarquia, mas incorporou o Rio Branco ao sobrenome e ao registro civil.

Mas mudanças existiam e vinham para ficar. A partir da Constituição de 1891 a Igreja estava separada do Estado. Introduziu-se o registro civil de nascimentos, casamentos e mortes e se estabeleceu o regime federativo que deu às províncias (então transformadas em Estados) mais autonomia e controle fiscal. 

No entanto, como história não é conta de somar, certos elementos herdados da monarquia persistiam. Um deles era o perfil oligárquico da nação: novas leis eleitorais reduziram o número de eleitores e elegíveis. Em 1910, numa população de 22 milhões apenas 627 mil tinham direito a voto. No novo regime, o Exército teria papel fundamental, mas não vida fácil. A República, que começava violenta, não impediu a eclosão de movimentos dentro das casernas. No governo civil, sofisticou-se um procedimento interno conhecido como “política dos governadores”. Tal engenharia política incluía a aliança do “café com leite” - que fazia oscilar um presidente paulista e outro mineiro - e a montagem de um processo eleitoral fraudulento, de cabresto, para sustentar tal arquitetura. 

É também nesse contexto que toma forma o modelo da “república dos coronéis”. Contando com uma estrutura político-partidária frágil e instituições ainda pouco consolidadas, a saída foi recorrer ao mandonismo local: estrutura oligárquica baseada em poderes personalizados e nucleados nos latifúndios. Essas práticas de favoritismo, construídas no interior de relações de parentesco, minaram o estatuto da lei e da esfera pública. Visto sob esse ângulo, e como diziam os jornais, o País parecia uma grande fazenda. Mas uma fazenda com muita agitação e heterogeneidade. 

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Até os anos 1930, europeus, africanos e asiáticos entraram no País, introduzindo e misturando práticas de moradia e alimentação, tradições religiosas, costumes sanitários e formas de sociabilidade. Também o crescimento impressionante das cidades deu feição urbana ao Brasil. De um lado, edifícios elegantes, ruas calçadas. De outro, a expulsão das populações pobres demolia casas e disseminava cortiços: “caixotins humanos”, na definição de Lima Barreto.

O resultado foi uma profunda incompreensão que gerou mais revoltas. Em 1904, eclode no Rio de Janeiro rebelião popular contra medidas para erradicar a febre amarela. Em novembro de 1910, o baixo escalão da Marinha se levanta. Para conter a marujada, formada por negros e mestiços, a ordem era mantida na base da aplicação de castigos físicos. A Revolta da Chibata reagia a tratamentos que vinham do tempo da escravidão. A partir dos anos 1910 ainda outro setor urbano se agitaria: operários do novo parque industrial. A classe operária virava protagonista. Em 1900 havia cerca de 80 mil operários; em 1930, 275 mil. Em distintas regiões do País estouram movimentos sociais que combinavam a questão agrária com traços fortemente religiosos, como Contestado, Juazeiro e Canudos - resultado do processo de modernização e desatenção diante desse contingente populacional.

Como se vê, a República, que nasceu encabulada em 15 de novembro de 1889, deixou um legado ambivalente. De um lado, ela lembra, até os dias de hoje, o momento do boom da urbanização, da industrialização e da entrada de imigrantes. De outro, ficou na memória como um período de repressão, de falcatruas políticas, da aplicação de medidas racistas e da expulsão da pobreza. 

Um título incômodo se colou ao período: “República Velha”. Entretanto, se os primeiros anos da República foram mesmo violentos, também permitiram a abertura de um processo sem volta. É nesse contexto que se desenham os primeiros passos na constituição de uma sociedade cidadã e participativa. Talvez por isso o nome tenha emplacado só a posteriori. Foram os governantes e intelectuais da Era Vargas que chamaram seu próprio momento de “Estado Novo”. Em movimento contínuo, jogaram para o período anterior a pecha de ultrapassado, velho. Disse o crítico Roberto Schwarz que no Brasil tudo parece “recomeçar do zero”, e por aqui o nacional se constrói por subtração. 

15 de Novembro de 1889 acabou por vingar no imaginário nacional. Talvez por isso é melhor insistir no epíteto de Primeira República. Primeira, pois teve a coragem dos inícios e porque ensejou múltiplas formas de sonhar e exercitar a cidadania.

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Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros, de As Barbas do Imperador (Companhia das Letras)

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