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Livro traça 500 anos de história dos EUA e decreta: é a terra da fantasia

'Fantasyland' busca raízes americanas na Reforma Protestante e explica ascensão de Trump ao poder

Por Lúcia Guimarães
Atualização:
Obra mostra George Washington e seu pai, que repreende o filho por ter cortado uma cerejeira 

Há dez meses, a maioria dos americanos procura explicações para o susto que levou em novembro. O título do novo best-seller de Hillary Clinton, What Happened (O Que Aconteceu) é repetido com ponto de interrogação por uma população crescente, dizem as pesquisas. A mídia, castigada pela cegueira sobre a suposta invencibilidade de Hillary Clinton, ensaiou um ato público de contrição e despachou repórteres para ouvir eleitores brancos, desempregados ou subempregados de zonas rurais, os excluídos das transformações econômicas. Criou-se o mito de que o presidente foi eleito por brancos de renda baixa quando, de fato, sua base eleitoral branca transcendeu classe e gênero.

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Três anos antes da desvairada campanha presidencial de 2016, o jornalista e romancista Kurt Andersen, começou a escrever o recém-lançado Fantasyland: How America Went Haywire: A 500-Year History (Terra da Fantasia: Como a América Enlouqueceu: Uma História de 500 Anos). Os Estados Unidos foram primeiro colonizados há 400 anos, mas o autor acredita que o DNA da nação começou a ser formado na Reforma Protestante, um século antes. Impulsionada pela invenção da imprensa, a cisão da Igreja Católica permitiu que milhões de cristãos, pessoas comuns, escreve Andersen, decidissem que cada um deles determinava o que era verdadeiro ou não, não importa o que dissessem “especialistas” – a hierarquia do Vaticano. E por que os países europeus de maioria protestante não produziram as fogueiras para bruxas de Salem, a Cientologia e os tele-evangelistas? O autor lembra que os primeiros colonos do século 17, fugindo de perseguição religiosa, eram puritanos fanáticos que enforcavam os mais moderados Quakers e prometiam o mesmo fim para qualquer padre católico que ousasse pisar na colônia.

A narrativa da singularidade americana, o ‘exceptionalism’ de que tanto se ufana o país, é rica na exaltação dos fundadores da República, no século 18, homens como Benjamin Franklin e George Washington, mentes iluminadas que colocaram o país na marcha inexorável para o progresso que tornou o século 20 o século americano. Mas o século 18 foi marcado também pelo cuja pregaçãinfluente teólogo calvinista Jonathan Edwards, o, em Massachusetts, era interrompida por gemidos, gritos e desmaios, no melhor estilo histriônico que vemos em tele-evangelistas contemporâneos.

Em Fantasyland, o autor costura histórias do temperamento irracional que fez contraponto ao pioneirismo intelectual e científico. Das fogueiras de Salem, passando por Bufallo Bill e pelo arquimalandro político e dono de circo P.T. Barnum (“Nasce um otário a cada minuto”), Andersen conclui o livro com a eleição de um anfitrião de reality show para presidente, algo que considera, não uma anomalia, mas o que ele chama de apocalipse de 50 anos de piração crescente. Sim, Andersen, que atravessou a adolescência na fervura dos anos 1960 e é politicamente progressista, aponta para aquela década como o fermento da cultura de “fatos alternativos,” na expressão cunhada pela assessora da Casa Branca, Kellyanne Conway. A década que deu aos americanos direitos civis e a pílula, foi também um ponto de virada, ele escreve: “Jogamos fora os bons resíduos do etos puritano que nos fundou – disciplina, austeridade, hipereducação – e exageramos nas crenças puritanas em mágica, num apocalipse iminente e na utopia.” Esta é a terra da fantasia do título, ela encampa não só a crença em conspirações sobre o local de nascimento de Barack Obama, como a ideia de que a vida é um projeto customizado por cada um. Andersen deixa claro que acredita na primazia do Partido Republicano, hoje, no descontrole do bom senso. Mas, desde os hippies, lembra, os liberais contribuíram com causas como o combate irresponsável a vacinações.

A década de 1990 marcou, afirma Andersen, o momento em que os conservadores americanos perderam o norte. Foi quando, pela primeira vez na história, o partido se tornou agressivamente identificado com religiosidade cristã e acabou por eleger o menos religioso dos presidentes. Apesar de vagamente se dizer religioso – ateísmo é suicídio político nos EUA – Andersen lembra que o presidente trai sua distância ao se declarar “protestante,” quando os protestantes americanos se identificam por denominação, como metodista ou luterana.

Andersen especula se o século americano precedeu o século do declínio americano. Ele se diz assustado com o desapego a fatos e à ciência de que se orgulham os 34% dos eleitores que conferiram tanto poder ao desmonte em curso em Washington. Ele conclui Fantasyland com um modesto chamado à ação. Sugere menos partidarismo e mais denúncia sobre o risco das negação da realidade. Não é sair esbravejando, mas ele diz que, se está diante de um amigo ou parente conservador, não aceita como diferença de opinião afirmações do tipo “George Soros quer tomar minha arma.” E propõe também melhores hábitos de “higiene da informação”. Na semana em que o Facebook confessou ter servido de plataforma de propaganda no projeto do hacking russo da eleição presidencial americana, é uma sugestão de urgência renovada.

Capa do livro 'Fantasyland' 

Fantasyland Autor: Kurt AnderserEditora: Random House 481 páginas US$ 30

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