Luto em verde e branco: como o Brasil deve lidar com a tragédia da Chapecoense?

Ao lidar com perdas coletivas, como a da Chapecoense, a sensação de compartilhamento de experiências ajuda. Mas há pontos negativos, como a falta de privacidade, diz psicóloga

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Por Maria Júlia Kovács
Atualização:

A morte faz parte da vida e todos sabemos que um dia vamos morrer. Mas não dessa forma, na queda de um avião de madrugada, numa região montanhosa quase no aeroporto. Essa mescla de fatores, repentina, abrupta, violenta, envolvendo na sua maioria jovens com uma perspectiva de carreira pela frente, não é natural. Um time de futebol do interior de Santa Catarina, que vivia seu melhor momento. A caminho de um título sul-americano – e morreram quase todos de uma vez. Em vez de comemoração, choque e desespero. Que tipo de luto é esse e como lidar com ele?

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Tragédias envolvem sempre dor, um sentido de injustiça, perguntas que não têm resposta. Por que esses jovens, por que nesse momento glorioso? Famílias perdem filhos, para sempre uma perda dolorosa, que dificilmente se explica, mesmo que seja anunciada por uma doença – é uma perda invertida, filhos e netos que morrem antes de seus pais e avós. Como envolve um evento inesperado, busca-se desesperadamente uma resposta ou sentido. Dificilmente será encontrada no imediato, no calor do acontecimento. Cada um tentará à sua maneira elaborar o ocorrido.

O luto é um processo normal de elaboração da perda quando há vínculos estabelecidos como família, amigos e colegas. Pode haver confusão entre comoção e luto. O desastre que atingiu Chapecó é pleno de comoção, mas para alguns envolve luto pela qualidade de vínculos, por exemplo para a família e amigos – e talvez comoção para os torcedores, moradores de Chapecó, do Brasil e do mundo. Entretanto, quando pensamos em ídolos (um exemplo é Ayrton Senna), comoção e luto se misturam. Todos se emocionam, choram, sentem a dor no coração.

O luto não é doença, embora possa parecer pela intensidade de sentimentos e por comportamentos estranhos à primeira vista – como, por exemplo, correr e atravessar a rua sem olhar, deixar uma panela no fogo, não comer, não dormir, não sair da cama. É um momento que demanda cuidados. A pessoa em luto, principalmente nas fases iniciais, pode colocar sua vida em risco. As circunstâncias da morte interferem no processo do luto. Mortes por desastres aéreos, inesperadas e violentas, não permitem despedidas – uma questão relevante, a ponto de haver grupos de estudos sobre luto em situações de desastres, ligados ao Conselho Federal de Psicologia.

  Foto: RICARDO MORAES | REUTERS

O processo de luto pela perda de uma pessoa leva tempo, um tempo subjetivo para que se possa processar o que significa perder um filho, um cônjuge, figuras parentais, amigos ou amantes. Não se devem estabelecer períodos, ou modos de enfrentamento padrão. Cada um expressa os sentimentos à sua maneira e por isso ela deve ser respeitada e acolhida. Os estudos sobre luto dos pioneiros, como Freud e Bowlby, apontam para suas fases, com manifestações como choque; anseio e busca da pessoa morta; elaboração a partir da percepção da realidade da perda; lidar com sentimentos que a morte provoca e retomada da vida sem a presença do falecido. As fronteiras entre as fases nem sempre ficam claras. Atualmente, os estudiosos do luto apontam que, mais importante do que um padrão de enfrentamento, deve-se observar o processo do enlutado. Cabe destacar que o que está sendo vivido nesse desastre é o choque, que se destaca pela intensidade do impacto e pela sensação de torpor, sem que haja clareza sobre o que fazer. Tristeza, desamparo, desespero, desesperança, vulnerabilidade, medo, eis algumas das fortes emoções que sentimos, de difícil nomeação.

Um desastre aéreo representa um trauma, que atinge as pessoas como círculos concêntricos, tendo como analogia uma pedra que se joga na água. O maior impacto do desastre atinge os familiares, amigos; depois se pode pensar nos colegas do clube, torcedores, jornalistas, moradores da cidade, do Brasil. Crianças de Chapecó que conheceram os jogadores poderão ter sua primeira experiência de morte, tomando contato com o atributo que torna a morte dolorosa: não poder mais ter a presença da pessoa, como tinham até então. Crianças sofrem com a morte e devem ter seus sentimentos legitimados, e não evitados, como se não percebessem o que acontece.

E então nos perguntamos o que fazer diante de tanta dor e sofrimento? Em alguns casos a explicação pode ajudar na busca de sentido para o ocorrido. É importante deixar que as pessoas enlutadas falem, é o melhor que podemos fazer durante o trauma. Também é fundamental que ajudem nas atividades cotidianas. Cuidar de crianças e idosos pode ser muito importante para os enlutados. O que não se pode é abafar a dor, imaginar que se possa ter um dia igual aos outros. Ter fé e crença em Deus, ou uma perspectiva espiritual pode ajudar no conforto, mas nunca deve ser imposta, sob risco de provocar mais dor. Quando interfere no processo de sofrimento da pessoa, a imposição espiritual pode ser negativa – por exemplo, ao dizer que é preciso “aceitar a perda por ser vontade de Deus”, ou que não se deve chorar porque interfere na jornada da alma. Esses “conselhos” podem atrapalhar o fluxo de emoções que a morte de uma pessoa significativa provoca.

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Rituais coletivos como os propostos: abraçar o estádio, missas, partidas de futebol com homenagens também ajudam. Num processo de perda coletiva, há pontos positivos que envolvem a sensação de pertencimento no grupo, compartilhamento de experiências e sentimentos. Mas há também aspectos negativos, ao não permitir a privacidade para viver e elaborar os sentimentos diante da perda de um familiar. Possivelmente algumas famílias não aceitarão o velório coletivo, para que possam se despedir de seu ente querido e viver sua perda pessoal, e eles têm todo o direito. Nos processos coletivos, pode ocorrer invasão de intimidade prejudiciais ao seu processo de luto. Cantar ou bater palmas pode interferir no silêncio necessário para introspecção, que o sofrimento demanda aos enlutados. É difícil conciliar desejo dos familiares com um grupo maior que envolve, por exemplo, os torcedores e moradores da cidade.

Ouvimos dizer que o tempo ajudará a elaborar. Certo, mas nunca no esquecimento, e sim na integração possível desse acontecimento na vida de cada um. Não se propõe colocar uma pedra sobre os acontecimentos, e sim cultivar lembranças, narrativas e histórias. Podem ser escritos livros ou produzidos filmes. Avós contarão aos netos a história de seus pais. O luto para os principais envolvidos não acabará, mas há possibilidades de elaboração e integração na vida. Psicoterapia pode ser importante ferramenta de ajuda. Daqui a algum tempo, o impacto da tragédia vai se esvanecer. Já a memória nunca se apagará. Assim se espera.

MARIA JÚLIA KOVÁCS, PROFESSORA DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP E COORDENA O LABORATÓRIO DE ESTUDOS SOBRE A MORTE, É AUTORA DE EDUCAÇÃO PARA A MORTE – TEMAS E REFLEXÕES (CASA DO PSICÓLOGO)

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