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Maestro espanhol Jordi Savall forma orquestra com refugiados

Projeto resgata música das rotas de escravos entre 1444 e 1888

Por João Marcos Coelho
Atualização:
Maestro espanhol Jordi Savall em Bruxelas, antes do concerto 'A Rota da Escravidão' Foto: Clement Rossignol/Reuters

O que torna tão viva, atual e próxima de nós a música de Jordi Savall? Afinal, as músicas que ele toca e rege estão entre as mais antigas da humanidade. Contam-se às dezenas as notáveis criações multimídia deste talento diferenciado, envolvendo textos e ensaios, obras de arte visuais, livros de capa dura, tudo acoplado a CDs e DVDs em projetos conceituais que o tornam um músico essencial para o século 21. 

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Apenas este ano Savall já é responsável por dois gestos criativos – a criação de uma orquestra e um novo projeto audiovisual – que mergulham na realidade do planeta: em março, lançou o projeto Orpheus XXI, orquestra que selecionou seus músicos entre os milhares de homens e mulheres refugiados da Síria, Afeganistão e Bangladesh, entre outros países, hoje perambulando em acampamentos Europa afora. No dia 14 de julho, Orpheus XXI – Música pela Vida e pela Dignidade fará seu concerto de estreia no Festival de Arles.

No mesmo mês de março, sua gravadora Alia Vox lançou o projeto audiovisual As Rotas da Escravidão. São 2 CDs e um DVD contendo o concerto gravado na Abadia de Fontfroide, em 17 de julho de 2015 na França, no 15º. Festival Música e História; e um livro capa dura de 540 páginas em seis línguas: inglês, francês, alemão, italiano, espanhol e catalão.

Além do texto de apresentação, Memória da Escravidão, em que Savall a denuncia como “nascida há mais de 5 mil anos e a mais monstruosa de todas as instituições criadas pelo homem ao longo de sua história”, o livro também traz artigos preciosos de cinco historiadores especialistas no tema. Textos e documentos históricos, o índice global da escravidão em 2016 no mundo e uma cronologia das abolições do tráfico e da escravidão completam esta pequena enciclopédia sobre o tema.

Durante quatro séculos, entre 1444, data da primeira expedição de captura coletiva descrita em um texto contemporâneo, e 1888, data da abolição da escravidão no Brasil, os europeus e suas colônias escravizaram mais de 25 milhões de africanos. A América espanhola recebeu 2 milhões de escravos, mas o Brasil sozinho recebeu mais que o dobro, 5 milhões.

Aquarela de Debret mostra castigo de escravo, tema do projeto do compositor e maestro Jordi Savall Foto: Capivara Editora

Como podiam os escravos pensar em cantar e dançar? Savall responde: “O canto e a dança, ritmados pela música, foram os únicos espaços de expressão e liberdade que ninguém conseguia tirar deles. Foram o principal meio que lhes permitiu se sentirem livres, livres para expressar cantando suas penas e alegrias, seus sofrimentos e desejos (...). Para estes seres humanos cujas origens e línguas eram muito diversas, a música lhes permitiu também recriar um universo comum e resistir à negação da humanidade”.

A escravidão precede e prepara o racismo, afirma o historiador Christian Delacampagne: “Historicamente, a escravidão aparece primeiro. O racismo é só consequência da prolongada familiaridade de uma civilização com uma instituição, a escravidão, cujas vítimas são desde o princípio estrangeiras”.

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Se a leitura dos ótimos ensaios deprime porque a escravidão e sua sequela atual, o racismo, estão ainda hoje presentes no mundo inteiro sob formas muitas vezes mascaradas, as 33 músicas são a prova de que mesmo sob as piores condições de vida o ser humano é capaz de preservar sua humanidade graças à música, às artes e à cultura. Este é o credo de Jordi Savall ao longo de seus inúmeros projetos artísticos desde a fundação de sua Alia Vox, em 1998. Hoje ela contabiliza mais de 200 gravações em áudio e vídeo. 

Ele se deixa levar por sua sensibilidade na escolha do material musical, atesta a cantora paraibana Maria Juliana Linhares, responsável pela pesquisa sobre o repertório brasileiro e intérprete nos concertos, ao lado do percussionista baiano Zé Luís Nascimento, em entrevista ao Estado: “Conheci Savall no Mimo Festival, em Olinda, em outubro de 2014”. Depois de receber gravações de Juliana, Savall mandou-lhe um e.mail “pedindo material de música brasileira que tivesse conexão com a cultura africana”. Ora, “quase tudo na música do Brasil tem alguma coisa a ver com a presença dos africanos e seus descendentes”. 

Em maio de 2015, Savall decidiu-se pelo repertório. Das quatro músicas que participam do projeto, três são da Paraíba e uma do Rio de Janeiro. O repertório brasileiro contrasta em relação ao restante, composto basicamente do resgate de música colonial e músicas de tradição oral, africana, da América espanhola (México, Colômbia, Venezuela e Argentina) e de países como Mali e Madagascar.

As paraibanas Saí de Casa de Escurinho, Canto do Guerreiro de Erivan Araújo e Bom de Briga de Paulo Ró e Águia Mendes, e a carioca Vida ao Jongo, de Lazir Sinval, da comunidade da Serrinha, no Rio de Janeiro, são músicas ainda hoje tocadas, dançadas e cantadas. 

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Orgulhosa, Juliana diz que “a função da Paraíba neste concerto é mostrar que as lembranças dos povos escravizados não são apenas peças de museu, mas marcas culturais que carregamos, coisas que acontecem no nosso dia a dia até no nível inconsciente, e é por isso que características seculares revelam-se em músicas compostas por artistas ainda vivos”.

Qual o critério de escolha usado por Savall? “Ele decidiu o que incluir. É emocional, escolheu o que o toca pessoalmente. Creio que o critério é mais de volição interna, do sentir a coisa. O gosto dele fica acima de critérios musicológicos. Ele gostou? Está dentro!”

Ao longo de sua carreira, Savall vem interferindo, denunciando, exaltando e pregando o diálogo entre as culturas, a preservação da paz, a extinção das guerras, da fome e das mazelas ideológicas que maculam nosso planeta. 

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Um projeto de 2012, Pro Pacem, exemplifica seu alcance artístico e militante, pois combina uma seleção de 2.000 anos de “músicas para a paz” com textos de Edgar Morin sobre educação e do pensador catalão Raimon Panikkar com aquarelas do também catalão Antoni Tàpies, num livro capa dura de 1200 páginas. Savall começa citando um sobrevivente do bombardeio atômico de Hiroshima, às 8h15 de 6 de agosto de 1945 (“vejo corpos nus e despedaçados caminhando, a pele soltando-se dos ossos”) e termina lembrando uma passagem de O Idiota, de Dostoievski em que um ateu questiona o príncipe: “É verdade que você declarou, um dia, que a ‘beleza’ salvaria o mundo? Senhores, o príncipe acha que a beleza salvará o mundo qual beleza salvará o mundo? O príncipe contemplou-o com atenção e nada respondeu”. 

“O príncipe não tem resposta”, diz Savall, “mas nós acreditamos, como Tàpies, ‘numa arte que seja útil à sociedade’, uma arte que pela beleza, graça, emoção e espiritualidade tem o poder de nos transformar e nos tornar mais sensíveis e solidários”.

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Projetos como este arrepiam e nos alertam pelas denúncias e ao mesmo tempo nos deliciam com raras e inclusivas performances musicais, com direito a muito improviso e diálogos com todas as linguagens musicais do planeta, da ancestralidade ao contemporâneo.

Pois Jordi Savall sempre nos convida a uma dupla escuta: de um lado, como “desejo de resistência”; de outro, como “promessa de felicidade”, na expressão de Stendhal, uma promessa de felicidade pela escuta. A tese do musicólogo Esteban Buch, especialista nas relações entre música e política, é perfeita para a arte engajada de Savall. Buch escreve que “instalar-se num tempo de escuta que seja um tempo de plena felicidade, num contato com as obras, é muito difícil de conseguir na vida real, mesmo quando você é um melômano disciplinado... Os formatos de escuta estão de demasiado estilhaçados e nós mesmos também estamos assim: escutamos sempre com uma parte de nós, e não por muito tempo...”

Neste oceano de bilhões, trilhões de informações despejadas a cada segundo em nossos supersmartphones em tempo real, projetos como os de Savall constituem raras, preciosas ilhas que propiciam esta dupla escuta virtuosa. “A ignorância”, ele nos ensina, “é um dos dois grandes defeitos do ser humano; o outro é a falta de memória. Se não lutarmos contra a ignorância e a falta de memória, não poderá haver justiça. A música nos ajuda a viver, é uma fonte de felicidade. Ela nos define como cultura, com uma linguagem compreensível para todas as culturas do mundo”.

Brasil no projeto. São quatro as musicas brasileiras pesquisadas pela cantora paraibana Maria Juliana Linhares e selecionadas para o projeto Rotas da Escravidão

1) Vida ao Jongo (Lazir Sinval): canção de saudação, pedindo licença aos instrumentos, aos santos, às almas, ao povo para fazer um jongo. A base rítmica é o secular jongo, manifestação do sudeste do Brasil. 

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2) Canto do Guerreiro (Erivan Araújo):Mimetiza o ritmo e a estética de flautas do caboclinho paraibano. No carnaval de João Pessoa, as pessoas saem em “tribos”, trajadas de índios. A dança é processional e dramática, simula um massacre dos índios e “ressuscita” seus mortos com o declamar de uma “loa” (pequena estrofe poética que identifica cada tribo); todos dançam e tocam até o final do percurso. Não há canto, só flautas e percussão. Erivan fala da natureza que não existe mais, de culturas inteiras que dependiam dela e foram exterminadas. 

3) Bom de Briga (Paulo Ró e Águia Mendes): brincadeira poético-rítmica cuja letra fala de agressividade; o ritmo é maracatu; quando o “eu-lírico” faz as pazes com a vida, o ritmo muda para samba. O caráter combativo do maracatu contrasta com a malemolência do samba: dois ritmos de origem negra na mesma música. Diálogo entre as tradições negras mais próximas do Equador (maracatu) e as tradições originadas no trânsito de pessoas entre Recôncavo baiano e Rio de Janeiro (samba).

4) Saí de Casa (Escurinho): ciranda. Um negro, pobre, sertanejo, sai e vai para a cidade grande “beber água no mundo”

Capa de 'As Rotas da Escravidão', de Jordi Savall 

Les Routes de L'esclavage Autor: Jordi SavallGravadora: Naive € 32,99

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