Mão dura no Nilo

Morte de ativista mostra que governo egípcio quer eliminar toda contestação, avalia autora

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Por Marcia Camargos
Atualização:
Presente. Manifestante mostra cartaz com imagem de Shaimaa Foto: AMR NABIL/AP

Correu mundo a imagem da egípcia Shaimaa el-Sabagh, de 32 anos, expirando nos braços do companheiro de partido em Talaat Harb, umas das principais avenidas do Cairo. Ao lado de um grupo de notáveis da oposição, a ativista marchava para depositar flores para os mártires da Praça Tahrir. Como ela, morreram na semana retrasada ao menos outras 20 pessoas que haviam ousado se manifestar no quarto aniversário da revolução, desafiado a lei de tolerância zero contra protestos sem prévio consentimento das autoridades. 

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Brutal, a repressão determinada pelo presidente Abdel Fattah al-Sissi suscitou uma onda de condenação internacional e surpreendeu muita gente - mas não Victorios Bayan Shams, bastante familiarizado com as perseguições na região. Recém-chegado ao Brasil, após dois anos no Egito, esse jornalista de origem síria explica que, nesta época de forte instabilidade política, o papel do regime responsável pela derrubada do presidente Morsi é funcionar como instância contrarrevolucionária no âmbito doméstico e regional. 

Dada a importância do Egito no Oriente Médio, o governo tem a intenção de se converter em um poder militar que elimine toda contestação dentro e fora do país, seja na Síria, Líbia ou Sudão. Reafirmou a aliança estratégica com Israel, para onde exporta gás a preços inferiores aos custos de produção, deixando na penúria a população que enfrenta aumentos semanais desse produto essencial durante um dos invernos mais rigorosos da década. 

Avalizador da segurança do Estado de Israel em troca de apoio a seu projeto de permanência no cargo, Sissi procura apresentar-se como líder de uma moderna nação laica que enfrenta o radicalismo islâmico sob todas as formas. Nesse sentido, uma de suas prioridades, depois de neutralizar a Irmandade Muçulmana, seria erradicar o Hamas como força política e organização armada. Em um gesto de boa vontade no jogo de gentilezas mútuas ele destruiu os túneis e bloqueou sine die a passagem de Rafah. 

“O cinturão impenetrável estabelecido pela ditadura sufocou drasticamente a Faixa de Gaza, que perdeu qualquer contato com o exterior e nunca esteve tão isolada”, diz o jornalista. 

Na esfera doméstica, a situação de estrangulamento se repete. Com mais de 50% da população vivendo abaixo do nível de pobreza, analfabetismo e desemprego recorde, o atual regime não tem resposta para os problemas econômicos e sociais que desencadearam a revolução. “Pão, liberdade e justiça social”, palavras de ordem da Praça Tahrir em 2011, ainda estampavam os cartazes carregados pelos integrantes do Partido Aliança Popular, do qual Shaimaa fazia parte. Em tal cenário econômico de penúria, se não agir de forma violenta contra qualquer protesto o governo corre o risco de ver o barril de pólvora explodir outra vez. 

Como se não bastasse, a Península do Sinai sempre representou um risco latente. Abriga beduínos historicamente marginalizados e grupos armados como a Al Qaeda e o Estado Islâmico. Vem agravar o cenário a possibilidade da construção de uma barragem pela vizinha Etiópia, reduzindo em 80% o fluxo das águas do Rio Nilo. Isso sem mencionar o Sudão, antigo território do Egito onde os conflitos não têm perspectiva de paz no curto prazo. Diante de crises insolúveis, os generais usam não só a força bruta, mas também incitam o patriotismo e insuflam a xenofobia.

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“Agora culpam os imigrantes palestinos e sírios por roubar os parcos empregos, embora a situação da classe trabalhadora venha sendo precarizada desde a pior fase da revolução”, relata Shams, obrigado a engrossar o êxodo de compatriotas que, por longos anos, tiveram ali seu único porto seguro no exílio. “E o mais curioso”, prossegue, “é que o governo conseguiu, inclusive, mobilizar a grande imprensa para dar respaldo a essa política nacionalista e discriminatória.” Algo, diga-se de passagem, muito distante do ideário da geração Tahrir. 

Para garantir a subserviência da mídia, uma das primeiras medidas de Sissi foi prender jornalistas independentes e até mesmo profissionais da Al-Jazeera, detidos até agora. Habituado a oferecer justificativas pouco plausíveis para suas medidas arbitrárias, o governo apressou-se a elaborar versões para atenuar a indignação com a morte de Shaimaa, figura pública querida e respeitada. 

Entre as histórias inventadas estava a hipótese de execução pelos próprios camaradas devido a disputas internas, ou de que teria morrido pelas mãos de um fanático da Irmandade Muçulmana. No auge da incongruência, o Ministério do Interior chegou a identificar Sayed, o homem que a acolhe nos seus instantes finais, como um prestativo agente do serviço secreto tentando salvá-la de supostos terroristas. 

Victorios Shams, que conviveu com Shaimaa desde que chegou ao Egito no verão de 2012, explica que a ativista organizava os sem-teto para ocupar os luxuosos condomínios de Muhtalla, um dos novos bairros residenciais e comerciais em construção nos arredores do Cairo. Nesse contexto, sua execução teria sido encomendada pelo regime, aproveitando as aglomerações na data comemorativa. “Só não esperavam tamanha reação, levando o próprio Sissi a prometer diante das câmeras que o assassino será encontrado”, completa ele. 

Para Victorios, qualquer que seja o desfecho do episódio o recado foi claro. Após ter a casa invadida pela segunda vez, aceitou o conselho de fugir o mais rápido possível: “Saia do país sem esperar por nós”, dissera-lhe Shaimaa.

MARCIA CAMARGOS É ESCRITORA E JORNALISTA, COM PÓS-DOUTORADO EM HISTÓRIA PELA USP 

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