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Marta é maior do que Neymar?

Só o futebol feminino entende a mítica dos Jogos. Por falta de espírito olímpico, o futebol masculino deve ser banido da competição, diz professora

Por Katia Rubio
Atualização:

Ao longo dos 15 anos da pesquisa Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicas Brasileiros pude observar de um ponto de vista privilegiado o que é ser atleta olímpico em um país marcado pelo racismo e pela discriminação cordial. Claro está que essa constatação não se deu de imediato, nem naturalmente. Ela se apresentou, principalmente, no momento em que me debrucei especificamente sobre a história das 444 mulheres olímpicas, de quem supus que ouviria relatos sobre a discriminação que se revela na diferença de prêmios atribuídos a homens e mulheres atletas em um mesmo campeonato, pelas condições de treinamento distintas para meninos e meninas ou ainda no número de oportunidades para a prática e profissionalização. Porém, para minha surpresa, não chegou a uma dezena as atletas que abriram suas memórias e corações para relatar lembranças dolorosas de atitudes discriminatórias.

  Foto: ESTADAO CONTEUDO

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Não é de surpreender que quem mais relatou esses casos foram as atletas do futebol, modalidade considerada quase um patrimônio cultural do país, condição essa referendada pela posse de um pentacampeonato mundial exibido com orgulho até o vexame de um inesquecível 7 x 1 diante da Alemanha na última Copa do Mundo em território brasileiro. Nunca é demais lembrar que mesmo com toda essa ostentação uma medalha de ouro olímpica masculina nunca chegou à galeria de conquistas da CBF. Talvez por tudo isso, somado ainda à tacanhez e machismo dos dirigentes do futebol brasileiro, e também de parte da mídia esportiva, as mulheres tenham sido tão maltratadas, desprezadas e negligenciadas nessa modalidade. Começa lá em 1941 quando, por força da lei, elas foram proibidas de praticar o futebol nas escolas, nos clubes e em espaços públicos. Sim, PROIBIDAS. E na lei eram discriminadas todas as formas possíveis de futebol: de campo, de salão e de areia. Só não proibiram o de botão!

Liberadas, também por decreto em 1979, as mulheres puderam então praticar livremente um esporte destinado apenas aos homens, mas que só se tornou olímpico para elas nos Jogos de Atlanta em 1996. E já naquela edição as mulheres brasileiras mostraram que proibição nenhuma as faria frequentar apenas as arquibancadas na condição de espectadoras. Chegaram muito próximo de um pódio logo em seu debut olímpico, terminando a competição na 4ª colocação.

Das leis para os costumes o que se viu foram as próprias famílias impedirem as meninas de jogar futebol, principalmente quando elas tinham irmãos homens, como foi o caso de Juliana Cabral, que contou com o auxílio dos irmãos para dar conta das tarefas domésticas e ter tempo de compartilhar sua habilidade de artilheira no time dos meninos.

Subversivas, elas jogaram nas escolas, nos clubes, nos espaços públicos, como meninas ou disfarçadas de meninos, mas jogaram. Praticaram o mais nobre espírito olímpico e talvez por isso guardem tanto carinho e consideração por essa, que é para elas, a competição de maior visibilidade. Depois de 5 participações olímpicas elas acumulam duas medalhas de prata e muitas histórias de descaso, desrespeito e discriminação de gênero e esportiva. A elas nunca foi dado o direito de ter um ciclo olímpico de 4 anos decente como têm todas as atletas com reconhecida chance de medalha. Sem clubes, sem campeonatos estaduais e brasileiro dignos as mais afortunadas conseguiram algum contrato para jogar fora do país ou sobreviveram do futsal ou outra atividade relacionada ao esporte. Há muitas que vagam por clubes com promessas de contratos não cumpridos vivendo o périplo de heroínas de fábulas infantis, com a diferença de que o final de suas histórias nem sempre é feliz. De suas narrativas brotam relatos de concentrações precárias, profissionais toscos e preconceituosos e falta de respeito. Mas, ainda assim elas persistem. Formiga, a mais longeva de todas as futebolistas brasileiras e olímpicas mundiais, está entrou para a história como a única atleta a participar de 6 edições olímpicas e ostentar dois vice-campeonatos. Multiplicado por 4, lá se vão 24 anos de serviços prestados à seleção, apenas em Jogos Olímpicos! Uma façanha para ser celebrada por qualquer Confederação de Futebol ou Comitê Olímpico do mundo... não os nossos. Formiga continua a lutar como uma guerreira para defender sua posição de atleta e olímpica, assim como tantas atletas que desejam jogar, tentando transformar a “ajuda de custo” que as jogadoras recebem, em salários dignos como ganham os homens.

Diferentemente, os homens pouca ou nenhuma importância dão aos Jogos Olímpicos, e tudo aquilo que eles representam para outras modalidades. Poucos são os jogadores que de fato desejaram estar e participar da celebração olímpica pelo que ela é. Falta-lhes entendimento de que a medalha de ouro e a coroa de oliveira são a certificação da condição mítico heroica atribuída aos atletas, que mesmo sendo profissionais, ainda mantêm vivo o desejo de partilhar de um lugar destinado a poucos, que se imortalizam por um feito raro em vida, o chamado “espírito olímpico”.

Por isso defendo a permanência apenas do futebol feminino nos Jogos Olímpicos. Que a Copa do Mundo seja o espaço dessacralizado destinado a um espetáculo que vive de si mesmo. Manter viva a discussão sobre os valores olímpicos é tarefa hercúlea que entrou em uma nova esfera com a criação da Agenda 2020 do Comitê Olímpico Internacional, onde a igualdade de gênero, o combate à corrupção e ao doping ocupam espaço central na discussão. E é nesse espaço que o futebol das mulheres brasileiras merece estar ouvindo apupos no estádio como “Ahhhh, Marta é melhor do que Neymar”!

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AGOSTO

Torcedores começaram a se queixar nas redes sociais da falta de camisas da Seleção com o nome da jogadora Marta nas costas. A fornecedora oficial afirmou que a preferência por Neymar e cia. é uma opção comercial dos lojistas.

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