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Milagre ao revés

Esperança e desilusão na fugaz visita de um papa a uma cidade esquecida da América Latina

Por Aldyr Garcia Schlee
Atualização:

Quando soube - em 1988! - que o papa João Paulo II vinha ao Uruguai, não acreditei. Perguntava-me: como, por quê, para quê? E, como quase todos os meus conterrâneos de Jaguarão (do lado de cá da ponte sobre o rio de mesmo nome) e como todos os meus conterrâneos de Río Branco (do lado de lá dessa ponte), sentia-me, além de incrédulo, perplexo.

Afinal, só uns 10% dos uruguaios professavam a fé católica. Naquele (eu diria sempre neste) país laico, no país de Artigas - onde “nada tenemos que esperar sino de nosotros mismos” -, não seria de admitir que houvesse razão para a visita papal. Mas o papa, a religião e, particularmente, a Igreja têm suas próprias (e desconhecidas) razões. Agora, viaja pela América do Sul o papa Francisco: foi ao Equador, à Bolívia e está, hoje, no Paraguai. O papa Francisco não é o papa João Paulo II: é sorridente, jovial e argentino; o outro era sério, casmurro e polaco.

Da passagem de João Paulo II pelo Uruguai, que inspirou 'O Banheiro do Papa', ficou o lixo barato na praça vazia Foto: REPRODUÇÃO

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Karol Józef Wojtyla, o polonês, tinha 68 anos quando esteve em Melo, pequena cidade uruguaia a 60 quilômetros da fronteira com o Brasil. Veio e, mal acabou a missa, se foi. Mesmo que eu não o tenha visto (porque preferi tratá-lo literariamente como fruto da minha imaginação, e não da minha memória), pude perceber que, desde o anúncio da viagem, desde a confirmação da hora de sua chegada e do tempo de sua estada, o que se viu e sentiu em Melo não foi a sua presença, mas a sua ausência, na fugacidade da expectativa criada, resumida em resignada esperança e em contido desejo de fazer cada um o seu mínimo e próprio milagre por conta do Papa e da movimentação gerada pela vinda dele à cidade, com a multidão de visitantes que estariam necessitados de comida, bebida e tudo o mais.

Era na vinda do papa que se gerava a possibilidade do milagre, por conta da venda do pouco que se tornasse disponível em casa, no quintal, na rua... e que fosse capaz de render o suficiente para se ter um pouco mais, algo como açúcar para tomar mate doce, massa para encher a barriga e farinha para fazer tortas fritas em dia de chuva.

Pois foi tudo tão rápido e inesperado como um milagre; mas um milagre ao revés: quando se viu, o que se queria que acontecesse, o que tinha que acontecer, o que era certo que aconteceria não aconteceu; e logo, logo já não dava mais para acontecer. O papa veio e se foi: e pronto! Ele havia sido um retrato na parede, uma faixa na rua, o homem que passava rápido, acenando entre agentes de segurança e motociclistas.

Quando mal se chegava a pensar numa ajuda dele, já se tinha ido embora. Mal chegara a aflorar uma esperança no que seria o júbilo dos deserdados, o regozijo dos esquecidos, ele já se fora; e todos se foram. Na esplanada vazia, onde se rezara a missa, ficou a terra vermelha e pisoteada, cheia de lixo barato.

Afinal, a diocese de Melo estava e está na região mais pobre do Uruguai, a das arrozeiras de Treinta y Tres, produtoras de uma das riquezas uruguaias, em campos ocupados pela miséria, reunindo os trabalhadores mais explorados do país, que ainda vivem em condições sub-humanas e que já não têm mais no que acreditar porque, depois de acreditar em tudo, acabam acreditando em nada.

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Francisco vem em missão evangelizadora (“atrair aqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja”), acha que não faz proselitismo (o proselitismo é uma caricatura da evangelização, afirma). Ele dispôs-se a ouvir o quéchua, está ouvindo o guarani, está tratando de religar-se, na língua que for, como não poderia deixar de ser.

Embora tenhamos na dita América Latina quase a metade dos católicos do mundo, não precisamos de números porcentuais para saber que ganhos têm tido na Bolívia, no Paraguai e em toda a América do Sul as prolíferas igrejas evangélicas.

Para que se entenda, contudo, por que não fui ver o papa em 1988 - e tenha apenas seguido os passos de sua memória, em Melo, uma semana depois -, digo que, a par de minha perplexidade ante a vinda dele, houve um dia, em 1910, muito anterior ao meu nascimento, que nos marcou a vida, na fronteira, como se fôssemos de uma terra só, despertados para um momento de confiança, uma possibilidade de certeza.

Um dia aconteceu tudo do lado de lá; mas foi como se acontecesse do lado de cá. Desde então crescemos todos, sobre os dois lados da linha divisória, sabendo que lá havia conquistas a preservar e, quem sabe, a alcançar aqui - como quando foi aprovada a lei do divórcio, aboliu-se a pena de morte, se pôde retirar dos recintos públicos as imagens religiosas. Ou quando diminuiu-se para oito horas diárias a jornada de trabalho, criaram-se as pensões por velhice e assegurou-se a gratuidade do ensino.

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De 1910 até o golpe militar dos anos 70, o Uruguai nacionalizara os serviços bancários, ferroviários, portuários e a produção de combustíveis e energia. Foram uma, duas, três gerações que se criaram por aí, na fronteira, e que se acostumaram, por aqui, com tudo isso - e, daqui, não deixaram de invejar essas coisas, inclusive as conquistas do futebol uruguaio, com os títulos olímpicos (de 1924 e 1928) e os campeonatos mundiais (de 1930 e 1950). Mas o que nos marcou a todos, mesmo, foi sabermos sempre que éramos gente boa e cumpridora sem sermos homens de religião e que, por essa singela razão, não sabíamos atinar por que o papa João Paulo II vinha a Melo.

ALDYR GARCIA SCHLEE É ESCRITOR E TRADUTOR. ENTRE OUTROS LIVROS, ESCREVEU O DIA EM QUE O PAPA FOI A MELO (MERCADO ABERTO), QUE INSPIROU O FILME O BANHEIRO DO PAPA

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