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Minha mãe e as fronteiras de Trump: a paranoia impede o bom humor, mas não os riscos de terrorismo

Assim como nos Estados Unidos dos anos 50, a paranoia vigente impede qualquer chance de bom humor, mas não elimina os riscos

Por Ariel Dorfman
Atualização:

Donald Trump, reagindo aos recentes ataques terroristas em Nova York, conclamou o governo e a polícia a lutarem – no melhor estilo macarthista – contra o “câncer interno”. E em seguida afirmou: “Não entendo como os deixaram entrar neste país”. Evidentemente, acredita que esses e milhares de outros criminosos semelhantes não foram submetidos ao escrutínio drástico (extreme vetting) que propôs como indispensável para bloquear na fronteira dos Estados Unidos terroristas islâmicos ou pregadores da sharia. É duvidoso que tais tentativas de impedir o acesso de tais visitantes ao solo americano tenham algum êxito.

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Muito tempo atrás, minha mãe, Fanny Zelicovich de Dorfman, que morreu há mais de 20 anos, teve que enfrentar um interrogatório parecido com o proposto pelo candidato republicano. Sua experiência poderia nos ajudar a esclarecer os inconvenientes e armadilhas contidos em exames desse tipo.

Ainda que Fanny costumasse contar com graça sua detenção por funcionários da migração americana, não houve, é claro, muito do que rir naquele episódio.

Minha irmã e eu soubemos das desventuras de nossa mãe no último dia de estadia num acampamento de verão em Massachusetts (foi em fins de julho, talvez agosto de 1953), quando nossos pais não apareceram para nos buscar. Papai pedira a uns amigos de Boston que se encarregassem de nós, enquanto tentava tirar mamãe da embrulhada em que se havia metido.

O problema ocorreu porque minha mãe, tendo acompanhado o marido numa viagem à Europa, resolveu não voltar com ele para os Estados Unidos, mas fazer a travessia em um lento transatlântico para chegar a Nova York, onde, sendo meu pai, argentino, um alto funcionário das Nações Unidas, morávamos havia nove anos, com visto diplomático.

O que significou que minha mãe estava sozinha quando teve seu encontro com os agentes da migração.

Começaram fazendo as perguntas de praxe: seu nome (a senhora usa, ou usou, algum sobrenome que não o atual?), endereço, status de residente. Então, ganhando coragem talvez por causa da Lei McCarran, promulgada no ano anterior, apesar do veto do presidente Truman, decidiram sondar outros aspectos de sua identidade.

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– Are you now or have you ever been a member of the Communist Party?

(A sra. é, ou foi, alguma vez, membro do Partido Comunista?)

Foi fácil para mamãe responder. Poucas vezes ela ousou discordar de meu pai sobre qualquer coisa, mas, quanto ao comunismo, discordava de suas ardentes simpatias bolcheviques, embora sempre fizesse isso com carinho e humor. Durante o jantar, por exemplo, anunciava, com um brilho travesso nos olhos, que havia fundado uma organização, o PCLRCAV (Partido Comunista Levemente Reformado para Conservar a Vida), do qual era presidente, secretária, tesoureira e membro único. Assim, pôde responder, com toda veracidade, que não, não era nem nunca havia sido membro do grupo totalitário que os funcionários da migração queriam extirpar dos Estados Unidos.

– A sra. defende a derrubada do governo dos EUA pelo uso da força ou pela subversão?

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A pergunta era ridícula, mas minha mãe mordeu a língua. Não lhes disse que amava muitas coisas do país (adorava Roosevelt), a ponto de haver cogitado tornar-se cidadã americana, mas a caça às bruxas contra os vermelhos, as investigações do Congresso em torno de atividades tidas como antiamericanas, a cruzada de Joseph McCarthy pela pureza ideológica e a perseguição ao próprio marido e incontáveis amigos haviam tornado desagradável e irreconhecível esses Estados Unidos de Lincoln. De fato, já estávamos planejando nos mudar para o Chile. Mas o que ganharia discutindo tais assuntos com gente como aquela?

– Não – respondeu – Claro que não.

E finalmente a interpelaram com algo verdadeiramente surpreendente:

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– A sra. tem a intenção de assassinar o presidente dos Estados Unidos?

Minha mãe não conseguiu segurar. Riu da pergunta tão absurda. Sua única intenção era desembarcar do navio e reunir-se com o marido para que viajassem rumo norte para buscar os dois filhos. Achou que uma brincadeira poderia descontrair o ambiente.

– Se fosse assassinar o presidente, os srs. acham que lhes diria?

Confiante em que seu generoso encanto lhe permitiria sair sempre de qualquer contrariedade, assombrou-se quando lhe bloquearam imediatamente o ingresso nos EUA e a mandaram para a Ilha Ellis, enquanto era investigada a fundo a sua atitude agressiva e possivelmente letal. Ante seus protestos de que se tratava apenas de uma piada, responderam: “Isto não é coisa para se rir, sra. Dorfman”.

As lendas da família e a inclinação narrativa irreprimível de minha mãe para exagerar de forma épica qualquer aventura asseguram que ela esteve detida três dias nessa ilha em frente a Manhattan onde, durante décadas, milhões de imigrantes foram depurados e registrados antes de entrar nos Estados Unidos. Mas acho que sua odisseia provavelmente não durou mais que uma longa noite. O que sei é que o então secretário-geral das Nações Unidas, Dag Hammarskjöld, precisou intervir pessoalmente para convencer os comissários de que a dita Fanny Zelicovich de Dorfman não constituía nenhuma ameaça à segurança e ao bem-estar da nação, nem tampouco atentaria contra a saúde ou a vida de seu presidente.

Sessenta e três anos depois, numa era dominada pelo medo ao estrangeiro e ao diferente – muçulmanos em lugar de vermelhos como o inimigo, a sharia em lugar do marxismo doutrinário como filtro e enfoque –, o encontro de minha mãe com aqueles inquisidores e suas perguntas é uma prova anedótica de como o tipo de escrutínio drástico proposto por Donald Trump, além de violar a Constituição americana acabaria por deter na fronteira pessoas inocentes como Fanny Zelicovich enquanto criminosos experientes passariam incólumes na prova sem maiores dificuldades. Aqueles que estivessem verdadeiramente decididos a causar devastação ocultariam sem dúvida seus propósitos (ou acaso não recebem treinamento intensivo?), e os que fossem apenas ingênuos para fazer uma brincadeira com a paranoia vigente seriam entregues às mãos ineficientes da Homeland Security.

E isso, com efeito, é sério demais para se rir. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

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  Foto: AXEL SCHMIDT | REUTERS
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