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Na mira

De carne de primeira, o javali virou praga nas lavouras do Brasil e motivo de guerrilha entre caçadores e defensores de animais

Por Monica Manir
Atualização:

Não sobrou batata inteira para contar história. Estavam todas mordiscadas e espalhadas ao longo da lavoura. O autor da devastação agiu com pressa, e sem a mínima preocupação em esconder o rastro. As pegadas continuavam por ali, unhas em forma de pinça, fundas, impressas no solo, apesar da chuva forte da noite anterior. Adiante, mais vestígios na lama. Agora era o amendoim que estava revirado, como se um trator bêbado tivesse ziguezagueado na plantação. Do canavial ao lado, pulsava um cheiro conhecido. Era cheiro de porco. As pegadas tinham digital de porco. As fuçadas tinham nariz de porco. Decididamente, aquilo era coisa de porco.

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Só que não.

Caminhávamos em Paraíso, cidade a 420 quilômetros de São Paulo, que vive seu inferno agrícola. Varas de javalis percorrem as fazendas destruindo batata-doce e amendoim. Sobra também para o milho, a cana, a mandioca. Até seringueiras sofrem a varredura desses animais, que possuem a mais extensa distribuição planetária entre todos os mamíferos terrestres. Os javalis estão por tudo, e hoje centralizam um debate acirrado entre caçadores e ativistas que defendem os direitos dos animais.

Num levantamento publicado pela Unesp de Rio Claro, o mapa do País está manchado de javalis do Nordeste ao Sul, mas pesquisadores já se perguntam se não seria o caso de começar a pintar também o Norte. Há registro desses suínos no Pará e em Roraima. No Rio Grande do Sul, fala-se em 500 mil. O ecólogo Felipe Pedrosa, um dos autores do estudo, resiste em fixar um número de cabeças. “É muito difícil afirmar isso, vou errar feio, mas não nego um cenário de apocalipse”, diz. Pedrosa explica que a vida reprodutiva dos javalis tupiniquins começa muito cedo: eles procriam duas vezes ao ano, têm seis filhotes por ninhada; então, uma população inicial de 10 animais vira mais de 200 em dois anos. “Se o Estado brasileiro não tomar providências razoáveis e cabíveis, algumas regiões vão sofrer bastante”, alerta.

  Foto: JOSE PATRICIO | ESTADÃO CONTEÚDO

No microcosmo de Paraíso, o fazendeiro Jarbas Antonio Garcia de Matos mira o horizonte com certa resignação. Pelos seus cálculos, já gastou R$ 15 mil só para cercar com choque as plantações, prática que diminui seu prejuízo em aproximadamente 30%. “Quem não tem condição de cercar desiste de produzir”, afirma. A cerca é baixa, e há quem já tenha flagrado um filhote indo e voltando por ela com uma espiga entre as presas para entregar à mãe javali. Lenda rural?

O javali é sabidamente inteligente. Se percebe uma situação de perigo, muda de hábitat, nem que tenha de caminhar 30 quilômetros. A audição é apurada, o olfato mais ainda. Onívoro, como os humanos, traça tudo: de sementes de fruta e ovos de tartaruga a bezerros e galinhas. Gosta de umidade, e não raro destrói nascentes. Também tem hábitos noturnos, o que complica a sua localização. Se bem que Jarbas de Matos já flagrou uns 15 deles deitados no meio do gado em pleno sol da tarde. Ficou de orelha em pé. Esses invasores podem transmitir 50 enfermidades, entre elas a febre aftosa e a peste suína, o que provocaria um estrago nuclear no mercado. Só Santa Catarina tem 1/5 de sua economia baseada na criação de porcos, com os quais o javali, aliás, também gosta de se misturar intimamente.

Em termos genéticos, javali puro no Brasil, talvez só nos criatórios. Uma primeira leva chegou aqui em 1989, vinda do Uruguai. Mas é da segunda que o ecossistema se ressente mais, quando espécimes foram importadas especialmente da França e do Canadá sob o rótulo de “sangue azul”. Na época, anos 1990, o cirurgião plástico Carlos Toledo comprou 14 matrizes e 2 cachaços (os machos) e os instalou numa propriedade sua em Brotas. “Comi na Argentina e na Europa e desenvolvi fascínio pela carne”, diz. É fácil se deleitar com uma iguaria de pouca gordura, baixo colesterol, fácil de digerir e com sabor meio adocicado. “Entre as carnes exóticas, é a mais suave”, classifica Lucas Sete Camargo, cozinheiro do restaurante Mocotó, em São Paulo, que serve costelinha de javali com cuscuz de milho e feijão guandu. Do freezer do restaurante, ele retira uma amostra: o tom é avermelhado, nada a ver com a brancura do porco. Seu fornecedor é a Temra, que tem por volta de 500 matrizes em Piedade e Pilar do Sul. “O que difere é a marmorização e um gosto que agrada até às crianças, e você sabe como criança é seletiva”, lembra André Fleury, um dos donos do negócio.

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O fato é que, nos idos de 1990, houve um boom de compradores, mas também um boom de decepcionados com o trabalho que o bicho dá. Vendido como rústico, ele tem lá suas idiossincrasias, como a necessidade de espaço. Para evitar fugas, o criador tem de levantar duas cercas, uma delas de 1,80 m de arame na altura com 40 cm de alvenaria na fundura, e ainda reservar pelo lado de dentro uma área de trânsito para evitar brigas. Também precisa esperar em torno de oito meses para que suas crias atinjam os 40 quilos desejados pelos compradores, porte gastronômico ideal para extrair o pernil, a paleta, a costela, o stinco, o carré. “Pessoas que chamo de desonestas acabaram cruzando o javali com o porco para acelerar o crescimento e a produtividade”, diz Toledo. Um javali autêntico dá quatro filhotes. Um javaporco, como dito, em média seis, e em quatro anos cada javardo pode chegar a 160 kg.

No paralelo, o Ibama apertou a fiscalização sobre as fases do processo e mesmo sobre novos criatórios, que foram proibidos. Estimulados, ou por descuido, os javaporcos pularam a cerca e, sem predador natural, deu no que deu. Em audiência no Senado no dia 17/3, o engenheiro agrônomo Rafael Salerno resumiu assim sua grita quanto à invasão: “Há uma catástrofe ambiental em curso muito grande, diária, e nós, caçadores, não há outro nome pra isso, não estamos inclusos nas discussões nem sentamos à mesa nos conselhos”.

Ele falava de si e dos outros 7 mil voluntários que têm permissão do Ibama para matar javalis. Desde março de 2013, o órgão autoriza o manejo desses animais desde que o interessado se inscreva no Cadastro Técnico Federal (CTF), que deve ser renovado a cada três meses. Quem deseja sair armado também precisa protocolar a declaração de manejo na unidade do Ibama na região em que for realizar o controle, além de portar autorização do Exército para tanto. Quanto ao que fazer com o animal morto, estão proibidas sua venda ou doação. Se quiser consumir, tudo bem, desde que “obedecidas as normas de controle sanitário e ambiental”. O manejador também está intimado a entregar trimestralmente um relatório sobre suas atividades, a ser protocolado na unidade do Ibama em que se cadastrou.

Dá para desconfiar de que nem sempre acontece assim e que não será o proprietário rural a fazer o trabalho. Salerno, que coordena a rede Aqui Tem Javali, começa com uma porcentagem: 80% desse controle no Brasil é feito com a ajuda de cachorros. Alguns preferem cães de agarre, como o pitbull e o dogo argentino. Outros optam pelos de rastro, como o foxhound americano. Há quem junte uma turma e conjugue os dois. Décio Silva, que mora em Santa Gertrudes, a 9 km de Rio Claro, tem quatro foxhounds (Confiança, Garoa, Morena e Barão) e é o que basta. Prefere o cão de rastro, que acua a presa sem agarrar. “Assim é possível procurar o melhor ângulo para o tiro, sem risco de acertar o cachorro.” Quando conversamos, Décio não estava num bom momento para aventuras. Afora as quatro hérnias de disco, era tempo de quaresma. E a maior parte dos caçadores respeita esse recesso católico. “É assim, como se diz, mitos que aconteceram no passado”, diz. “Já vi casos de quem atirou e acabou matando o cão.” No ano passado, ele abateu 112 javalis; neste, uns 30. Silva entrega as buchadas para Pedrosa avaliar na Unesp. “Quando você pensa que está acabando, de repente liga um sitiante desesperado dizendo ‘vem aqui’. Em uma noite, 3 javalis fazem um estrago de 50.”

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O advogado Mardqueu França Filho, espiritualista, não cancelou o manejo durante os quarenta dias pré-Páscoa. Chamado de samurai na rede, com um visual mais para Wagner Moura, convocou numa noite de lua crescente sua tropa de elite: Roney, Elias e mais um manejador, que pediu anonimato. Está tudo legalizado com esse quarto membro da equipe, os papéis da sua arma estão em dia no Exército, mas ele não quer ser associado publicamente ao seu hobby.

Primeiro porque não se pode falar em caça no Estado de São Paulo. A Lei Federal de proteção à fauna, de 1967, também conhecida como Código de Caça, proíbe a caça comercial e sem autorização do governo, mas não a regulamenta. O apelo de proteção à fauna e flora foi tão grande que alguns Estados, como o paulista, a proibiram em sua Constituição. A expressão normativa sobre os javalis teria saído como “controle” para não entrar em conflito com as legislações estaduais.

O apelo vem especialmente de organizações que defendem os animais. A Uipa, que instituiu o movimento de proteção animal no País há 120 anos, enviou ofício ao Ibama enfatizando que controle é caça e “que não podem ser abertos dissidentes de licitude para livremente matar os animais”. Quem assina o ofício é a presidente da ONG, Vanice Teixeira Orlandi. “A caça com armamento é muito cruel, já que os javalis às vezes são baleados e ficam dias agonizando”, diz. Ela pede uma política pública de controle, especialmente porque, quando a espécie foi trazida para o Brasil, já era um problema em outros países.

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Era e é. A França acusou um dano alto nas plantações provocado pelo alimento preferido de Obelix, alimento que também causou mais de 20 mil acidentes nas estradas francesas. Na Toscana, fabricantes do Chianti levantam muralhas de ferro e zinco para tentar conter um prejuízo que chega a ¤ 16 milhões na produção. Nos EUA, cerca de 5 milhões desses suídeos batem plantações em pelo menos 39 Estados. Texas é o campeão, com 2 milhões deles e uma caça autorizada que envolve inclusive helicópteros.

Dave Pauli, consultor sênior da The Humane Society of The United States, maior organização americana de proteção aos animais, reconhece que javalis e seus híbridos não são fáceis de controlar e que, na maioria das comunidades em que eles se disseminaram, alguma forma letal será parte da redução. Mas ele propõe uma força-tarefa que inclua controle de natalidade (“os americanos já estão usando o hormônio GnRH GonaCon com bons resultados”), a proteção das plantações, a remoção dos alimentos favoritos e, especialmente, a educação da população, para que entenda o tamanho do problema.

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“No Brasil, os animais não chegaram aos lugares mais distantes simplesmente andando, mas na boleia dos caminhões, com motoristas dispostos a espalhar espécies por causa do manejo permitido”, registra Pedrosa. “É um jogo delicado porque, ao mesmo tempo que temos necessidade de controlar para minimizar o impacto, de outro alguns esperam que o bicho não acabe para que a atividade da caça não acabe junto.” Enquanto a coisa não se resolve, instituiu-se mais um Fla-Flu: “madaminhas de ONG protetora de animal” contra caçador, “que só é bom quando morto”.

De seu lado, Mardqueu reconhece que os controladores estão “enxugando gelo” enquanto a discussão ficar só nisso. Mas também reconhece que, como instrutor e campeão de tiro, os javalis são um alvo mais interessante que as aves que abatia nos ares do Uruguai. Então, naquela noite de quaresma, ele juntou sua equipe para mostrar como é feito o manejo nas paragens de Paraíso.

Saímos às 11h da noite para o meio da plantação numa Hilux adaptada. A gaiola tem assentos e está forrada de espuma, para que Mardqueu possa apoiar seu fuzil customizado. Aliás, ele próprio está camuflado: não de samurai, mas de caçador de safári. Não deu meia hora para que chutasse a carroceria da pick up: “É porco!” O carro parou. A luz do Cilibrim, farol de longo alcance, apontava um grupo de javalis. Foram quatro segundos para o primeiro tiro; menos que isso para o segundo estampido. O bicho correu para a cana. Com cuidado, o grupo saiu a pé iluminando o breu com lanternas. Ouvia-se um arruar agonizante, no início mais espaçado, depois mais curto. Mardqueu pediu que esperássemos um pouco, porque o javali ainda podia se levantar e partir para o ataque. Aquele tipo de respiração indicava que ele acertara no pulmão, não ia demorar. Poucos depois o controlador entrou no canavial e, com um revólver 44 mm, deu um tiro na cabeça do animal. Ao contrário do que previam, não era um cachaço, mas uma fêmea. O comportamento padrão delas é acompanhar o grupo, não se distanciar dele, como fez durante a perseguição. Tinhas uns 60 quilos e estava prenhe.

A tropa ainda acertaria um javali jovem, de uns 30 quilos, depois de uma rodada de muitos quilômetros movida a café e óleo diesel. Entre as peleias, uns bichos saltitavam no meio do amendoim e das batatas. Tinham cara de coelho, orelha de coelho, rabo de coelho.

Só que não.

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As lebres europeias – gigantes, ligeiras, ariscas – são outro capítulo dessa história.