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Na toca do tatu

Megatatuzão do metrô - Shield Earth Pressure Balanced, a máquina que escava túneis; Sob os pés dos paulistanos, repousa um gigante que escava túneis do metrô. Aqui, sua anatomia

Por Flavia Tavares
Atualização:

O elevador de metal desce, aos trancos, 30 metros para debaixo da terra, partindo da Rua Oscar Freire. Mais uns passos numa lama pegajosa e clara, alguns minutos dentro de um trenzinho por túneis escuros, como aqueles dos filmes do Indiana Jones, e ali está. O rabo do tatu. Ou cauda, para ser mais fino. Por entre estruturas de metal e escadas estreitinhas, começa a jornada bicho adentro. Ele não é só um tatu. É um tatuzão. Melhor: é um megatatuzão. Pesa 1,8 mil toneladas, ou 1.800.000 quilos. É o equivalente a 2.250 fuscas juntos. Se bem que comparar o glorioso "Shield Earth Pressure Balanced", nome oficial do megatatuzão, com um fusquinha é covardia. O shield tem 9,5 metros de diâmetro e 75 metros de comprimento, levando-se em conta a couraça e a cauda. Os aumentativos vão sendo justificados. Faz muito calor dentro do tatu, o que não é exatamente uma surpresa. Mesmo agora, que ele não está com o metabolismo em plena atividade. O gigante está sonolento, avançando a 5 centímetros por minuto pela futura Estação Paulista da Linha Amarela do metrô de São Paulo. Não está escavando nada, porque não há terra nas estações. Só entre uma estação e outra. Quando ele terminar de atravessar esse pedaço, daqui a pelo menos 20 dias, e depois de passar por uma recauchutagem, recomeça o trabalho - ele escavará 3,2 quilômetros entre a Paulista e a Luz, a uma velocidade de 20 metros por dia. Já escavou outros 3,2 quilômetros da Faria Lima até a Paulista. Aliás, vira-e-mexe ele se pega pensando: por que a estação Paulista fica na Consolação e a Consolação, na Paulista? Depois, ele é que é o jeca. Os órgãos do animal incluem bobinas de cabo, de mangueira, transformadores, geradores, compressores e esteiras, muitas esteiras. Elas são como um sistema digestivo, um intestino, responsável por levar 30 toneladas de lama a cada cinco minutos para o Largo da Batata, e, de lá, para um aterro. São 200 caminhões por dia. O tatu come toda essa terra enquanto escava. Mastiga bem o terreno com seus 200 dentes. Para amolecer o solo, ora arenoso ora argiloso, cospe uma espuma. Avança como se um bração de 8 milhões de quilos empurrasse a parede. Nessa altura, uma patricinha dos Jardins já estaria pronta para chamar nosso amigo de mega-super-hiper-blaster-tudo-de-bom-tatuzão. Caminhando mais um pouco pelas entranhas do bicho, chegamos aos anéis que ele instalará enquanto se move lentamente sob as grandes avenidas da cidade. Sim, porque ele só escolhe as vias largas, sobre as quais passam carros e ônibus, para trafegar. Não é bobo. Vai que algum pedaço de terra cede e um prédio cai sobre seu corpão metálico. O tatu não quer ser responsável por nenhuma tragédia. No fundo, no fundo, ele é um bicho bom. Os anéis funcionam assim: conforme o tatu se arrasta para frente, vai instalando anéis de concreto, de 1,5 metro de largura, para dar sustentação ao túnel. Talvez isso tudo esteja confuso. Talvez, em vez de tatuzão, esse gigante devesse ser chamado de minhocão. Porque ele é tubular. Então, é só imaginar um minhoco que vai comendo terra e deixando anéis de concreto para trás. Por esse túnel, passarão os dois trens do metrô dessa linha. O cérebro fica bem perto do intestino. Nenhum insulto implícito. A cabine de controles do shield, com seis telas de computador e muitos botões verdinhos, é comandada, em pelo menos um dos turnos, por um colombiano, Antonio Vargas. Se falasse, o shield diria: "Mi nombre és armadillo". Não há dúvidas de que o tatuzão é macho. Só homens trabalham na operação da máquina. São 150, em três turnos. Os que operam o tatu passam 8 horas sem ver a luz do dia. Vinte deles são estrangeiros. Esse bicho enlameado é um poliglota. Bom, pelo menos alemão é certeza que ele falaria. Encomendado pelo Consórcio Via Amarela, o megatatuzão foi fabricado em Schwanau, na Alemanha, pela Herrenknecht, e chegou ao Brasil, no porto de Santos, em setembro de 2006. Viajou em mais de cem carretas até São Paulo. Levou três meses para ser montado, nos túneis de onde será a Estação Faria Lima. Custou 30 milhões - quase R$ 80 milhões. O gerente de produção do shield, o engenheiro Carlos Henrique Maia, não tem dúvidas de que o investimento vale a pena. Confessa: "A obra da Linha Amarela tem cerca de 4 mil homens. Mas, com o shield e 150 homens, nós fazemos 60% do trabalho". O megatatuzão não pôde ser usado no resto das obras por conta do tipo de geologia entre a Vila Sônia e Pinheiros, que é mais rochosa. Ali, para abrir os túneis, é usado um outro método, mais complexo, lento e trabalhoso. O tatu não é pra quem quer, é pra quem pode. O primeiro tatuzão usado no Brasil foi na construção da Linha Azul, aquela que liga norte e sul, no início dos anos 70. Eram dois shields, de 6 metros de diâmetro. Chegaram shield, viraram tatuzão num minuto. Os paulistanos acolheram os bichões. Parecem não se incomodar de ter gigantes deslizando sob seus pés. Qualquer coisa que vá aliviar o caos do trânsito sobre a terra é bem-vinda. Só que, naquela época, os tatus se arrastavam por baixo de prédios, como o da Caixa Econômica Federal, na Praça da Sé. "Passávamos muito perto das fundações dos edifícios e, debaixo da Caixa, a argila era tão dura que o tatuzão desviou de caminho. Deu trabalho colocá-lo no eixo", lembra Amauri Corrêa, engenheiro que comandou os trabalhos desses tatus pioneiros e deu consultoria nas operações da segunda geração, na Linha Verde, nos anos 90. "Ah, esse que veio depois era mais simples, porque o terreno era favorável. Tanto que ele foi fabricado no Brasil." E foi mesmo. Por um inglês, John Foster, que vive em Minas Gerais. Depois do cérebro, vem a boca. De dentro da câmara de pressão hiperbárica, é possível ver, de onde seriam os olhos do tatu, as hastes com os dentes girando e engolindo a terra. Ele é imponente, apesar da lentidão. Não faz movimentos bruscos, suas tocas serão duradouras. Deve ser por isso que se movimenta com tanta autoconfiança. É por essa câmara que os funcionários entram na cabeça do bicho para trocar os instrumentos de corte, quando eles se desgastam. E eles se desgastam muito. O megatatuzão chegou ao Brasil pintado de verde e amarelo (era uma homenagem, porque ele foi fabricado no ano daquela copa em que os nossos jogadores é que deveriam ter cavado um buraco e se entocado). Já está marrom, envelhecido. Mas continua digno. Ao completar sua viagem até a Estação da Luz, em julho do ano que vem, ele terá atingido a metade da vida. Será um tatu maduro. Acontece que, se nenhum outro trecho das obras do metrô tiver exatamente o mesmo diâmetro e as mesmas características geológicas, estará aberta a temporada de caça ao tatu. Ele será desmantelado, virará sucata. Megatatuzão não quer pensar nisso agora. Tem muita terra para comer, muito anel para instalar. Seus antepassados já diziam: quem nasceu para tatu morre cavando. DOMINGO, 18 DE MAIO Pára tudo! Ele chegou Durante o fim de semana, a circulação de trens do Metrô entre as Estações Clínicas e Consolação, da Linha Verde, ficou interrompida. A paralisação aconteceu devido à chegada do megatatuzão, que escava o túnel da Linha Amarela, à região da Avenida Paulista. TEMPERATURA Faz muito calor dentro do tatu, o que não é exatamente uma surpresa CAVIDADES Os órgãos incluem bobinas de cabo, de mangueira, transformadores e geradores ESTÉTICA Talvez, em vez de tatuzão, esse gigante devesse ser chamado de minhocão

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