Nascidos para morrer

O veterano correspondente de guerra britânico Robert Fisk reconhece o perigo dos ataques do Estado Islâmico. Mas, com a experiência de 40 anos no front no Oriente Médio, ele vê o grupo fadado à autodestruição – por falta de apoio dentro e fora das terras que controla. “Basta observar os refugiados árabes, que não buscam abrigo no ‘califado’ do EI, e sim na Europa”, analisa. Para acelerar a queda, a arma não deve ser bombas: “O melhor contra-ataque é investir em educação e justiça”

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Por Stenio Andrade
Atualização:

As bombas que explodiram em Bruxelas nessa semana deixaram 31 mortos e 316 feridos, levaram pânico ao metrô e ao aeroporto Zaventem, paralisaram a sede da União Europeia e deixaram a Bélgica em alerta máximo. Os piores ataques da história do país foram cometidos por extremistas, entre eles suicidas, que decidiram dedicar a vida à jihad. Foi mais uma obra do autodenominado Estado Islâmico, que prometeu uma campanha de terror contra o Ocidente. Desde setembro de 2014, o grupo é apontado como responsável por mais de 60 ataques e mil mortes em 14 países, sem contar Síria e Iraque, onde há quase dois anos domina uma área que proclamou “califado”.

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O alarme provocado por esses atos terroristas espalha o medo em lugares desacostumados a tal violência. O veterano correspondente de guerra Robert Fisk, que no passado entrevistou Osama bin Laden três vezes e hoje acompanha as ações do EI, reconhece o perigo do grupo. Pela primeira vez na carreira, o jornalista britânico percebeu linhas que não pode cruzar sem perder a vida. Mas, analisando o Estado Islâmico com a serenidade dos habituados ao calor do front, ele pede atenção à “ideia obcecada de que o EI vai te pegar” e vê o movimento como superestimado e em vias de autodestruição.

Aos 69 anos, Fisk vive desde 1976 em Beirute, no Líbano, onde acompanhou a guerra civil e as invasões israelenses no país, que o inspiraram a escrever o apaixonado Pobre Nação (Record). Diversas vezes premiado, ganhou respeito mundial pelas reportagens ferozes sobre as turbulências no Oriente Médio, que cobre há quatro décadas. É do que trata no aclamado A Grande Guerra pela Civilização (Planeta), misto de relatos e análises de coberturas históricas, que vão da Revolução Iraniana à guerra civil na Argélia, da invasão soviética no Afeganistão ao conflito Irã-Iraque e às investidas ocidentais contra Saddam Hussein e o Taleban. Viu de perto a Primavera Árabe e já esteve mais de 10 vezes na Síria nos cinco anos de conflito. Com tamanho repertório, ele analisa sem paixões estratégias e pontos fracos do EI (“eles tentam fazer o Ocidente odiar os refugiados”) e aponta um caminho: “A melhor arma é promover justiça e investir em educação no Oriente Médio. Isso aceleraria a destruição do grupo”, disse Fisk, nesta entrevista ao Aliás.

Os atentados de Bruxelas foram parte do que o Estado Islâmico considera uma crescente campanha em países ocidentais. Qual o significado disso?

Nada. O que o EI quer é destruir a generosidade do Ocidente de dar abrigo aos refugiados. O grupo tenta nos fazer acreditar que seus recrutas fanáticos existem dentro da comunidade de refugiados. Mas o fluxo deles (dos refugiados) para o Norte, rejeitando buscar abrigo no “califado” do EI, tem sido a grande derrota do grupo. Com atentados como esse, o objetivo do EI é nos fazer odiar os milhões de refugiados que vão à Europa e culpá-los pelos massacres do grupo.

Qual será a reação do Ocidente?

A de costume, eu presumo: mais bombardeios inúteis. Por outro lado, é interessante notar que o Exército sírio, ao que parece, está quase recapturando a cidade histórica de Palmyra das mãos do EI. Seria uma verdadeira derrota militar para o grupo – à qual temos dado pouca importância. Suponho, então, que os “caras errados”, que seriam as forças do regime de Bashar al-Assad (ditador sírio) apoiadas pelo poder aéreo russo, estão vencendo os “caras maus”.

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Seria o EI uma ameaça a países distantes, como o Brasil, recrutando combatentes ou planejando ataques em grandes eventos como a Olimpíada?

Não quero ser rude, mas você soa como o Pentágono. A ideia obcecada que se tem de que o EI vai te pegar é um exemplo de que não se entende o que está acontecendo. Claro que haverá casos assim. Já houve carro-bomba no extremo Oriente asiático, então por que não na América Latina? Mas esse não é o ponto. Vou à linha de frente na Síria e vejo bandeiras do EI do outro lado. Moro no Líbano, onde se veem bandeiras pretas no meio da rua. E as pessoas se preocupam com o EI no Brasil? Os alvos deles são outros. Integrantes do grupo passam de carro em frente à minha casa em Beirute, disso eu posso falar com certeza.

Muitos estrangeiros que se juntam ao EI se desiludem com as atrocidades. Vale a pena investir em projetos de “desradicalização” de jihadistas?

A questão é que eles não se tornam radicais só quando chegam lá. Já o são durante o voo de partida. Vários desses jovens (de origem árabe) que deixaram França, Inglaterra e Bélgica tiveram educação, mas em países que bombardeiam o Oriente Médio. Por terem estudado, sabem que os países que mais se beneficiaram com eles são os mais perigosos às pessoas que vivem nas partes do mundo de onde eles vieram. Há aqui uma grave dicotomia. Outra: o EI exerce uma política para a infância, investe nos instintos infantis dos seres humanos. Réus do grupo se portam como crianças em tribunais. Não digo que sejam inocentes. Em Avignon, na França, uma família francesa de origem árabe reportou o sumiço da filha, de 15 anos. Ela tinha ido à Síria. A polícia achou dois perfis dela no Facebook. Um sobre escola, música, típico de adolescente. O outro com fotos de destruição e a frase “quero ser parte das mulheres e crianças de Aleppo”. Qual o real perfil? Meu palpite é: ambos.

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Na semana passada, os EUA declararam que o EI cometeu genocídio contra yazidis, cristãos e muçulmanos xiitas. O que a declaração significa sobre a estratégia americana contra o grupo?

Absolutamente nada. Os EUA têm tratado o EI em termos apocalípticos desde que o grupo se expandiu em 2014. Não têm uma estratégia para lidar com o EI, exceto bombardeá-lo e fazê-lo parecer muito maior do que é. De fato o EI é perigoso. Mas a reação dos EUA tem sido do tipo Hollywood, em vez de por meio de conceitos. A melhor forma de destruir o grupo – e ele se autodestruirá – é promover justiça e educação no Oriente Médio. Mas nós do Ocidente não temos interesse. Se promovêssemos justiça aos curdos na Turquia, aos palestinos nos territórios ocupados, às minorias em países árabes, todos teriam dignidade e liberdade. Foi o que pediram, lembra? Nas manifestações de 2011, ninguém pediu democracia. Para os povos árabes, democracia é associada ao Ocidente, que apoia os ditadores. Nossas democracias apoiaram Hosni Mubarak, Anwar Sadat, Saddam Hussein. Apoiamos o perverso regime saudita – quando o último rei árabe morreu, a bandeira britânica foi posta a meio mastro.

A chave seria mudar a perspectiva ocidental?

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O grande temor de todo grupo fanático é o povo se educar. É o grande medo do EI e, por isso, tomaram o controle do sistema de educação. Investir em educação seria um bom contra-ataque. Mas é impossível convencer os EUA de um planejamento de longo prazo no Oriente Médio. Em 2003, quando invadimos o Iraque, não tínhamos um plano para o amanhã. Já, na Segunda Guerra, em 1941, Churchill convocou um gabinete para organizar a Alemanha do pós-guerra quatro anos antes do fim do conflito. No passado, planejávamos as coisas, hoje não. Veja a crise de refugiados: não estamos nem perto de saber como lidar.

Além de promover justiça no Oriente Médio, é necessária uma ação militar contra o EI?

Sempre fizemos ações militares no Oriente Médio, mas tudo foram mortes, sangue e injustiças. Ainda seguimos as políticas do acordo secreto Sykes-Picot entre britânicos e franceses na Primeira Guerra. Ainda adotamos o princípio britânico de ocupar a Palestina, o Iraque... Fizemos intervenções no Afeganistão e Líbia. Apoiamos árabes com bombas. Milícias curdas agem como nossos Exércitos. E ainda achamos que vai dar certo. É uma catástrofe! Não temos estratégia para o Oriente Médio. O mais perto disso foi a Suécia reconhecer a Palestina como Estado (em 2014).

O que podem fazer países fora do tabuleiro, como o Brasil?

Teria de ser melhorando a vida das pessoas. Água potável, esgotos, pontes e educação. Duas coisas me chocam muito na Síria: uma são os níveis educacionais muito abaixo dos padrões no Líbano; e a segunda é que, no Vale do Bekaa (Líbano), centenas de milhares de crianças sírias, que deveriam estar na escola aprendendo o alfabeto, fazem trabalho semiescravo, colhendo frutas por um tostão dos patrões libaneses. As crianças que deveriam voltar à Síria para reconstruir o país delas não estão aprendendo como. Se o Brasil quiser construir escolas no Vale do Bekaa ou na Turquia ajudaria muito o Oriente Médio.

Receber mais refugiados sírios é uma possibilidade à América Latina?

Sim. As grandes fomes do Oriente Médio, antes da Primeira Guerra, levaram muitos árabes à América Latina. O fato de que há tantos libaneses e sírios no seu país há mais de um século são exemplos de como é fácil aceitar. No caso brasileiro, foram mais cristãos, agora seriam mais muçulmanos. Muita gente não entende o benefício. O EI teria a maior das vitórias se os milhões de refugiados pedissem refúgio em Raqqa ou Mossul (cidades sob domínio do grupo). Mas não. Em vez do mundo islâmico, preferiram fugir para Berlim. A loucura autodestrutiva do EI está fazendo com que o grupo perca apoio dentro e fora do seu território. Esqueça ações militares. Ver muçulmanos fugirem à Europa é uma vitória para nós. E ainda tratamos refugiados como terroristas. Nos lixamos para a dor deles.

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A comunidade internacional não reconhece o EI como Estado. Como pode um grupo extremista controlar um vasto território?

Grande parte desse território se chama “areia”. E eles não o controlam, só as estradas. OK, o EI controla Raqqa e outras cidades. Mas não tem um território habitável. Os mapas que mostram vastos territórios de carnificina do EI não refletem seu poder real. O EI é uma terra de almas perdidas.

Você cobriu várias guerras em sua carreira. Como é cobrir o conflito sírio?

Até consigo ir a áreas fora do controle do governo. Mas, em partes do país em guerra contra o EI, não posso cruzar as linhas. Senão eu morro. A maior frustração para jornalistas na Síria é que, pela primeira vez, não se tem como cobrir os dois lados da história, como sempre se fez em guerras. Na Segunda Guerra, havia notícias neutras vindas de Berlim. Até na guerra civil da Argélia (1991-2002) se tinha acesso ao movimento islamista GIA. Mas na Síria é impossível. É espiritualmente devastador a jornalistas e ao jornalismo não poder cobrir o outro lado.