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Nós que éramos tão jovens

Os adolescentes que reverenciaram ‘Curtindo a Vida Adoidado’ há 30 anos são hoje adultos maduros, alguns, provavelmente, envelheceram mais do que o filme, cujo encanto permanece intocado pelo tempo

Por Sérgio Telles
Atualização:

Sérgio Telles

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Curtindo a Vida Adoidado (no original, Ferris Bueller’s Day off), de John Hughes, completa 30 anos esse mês, o que motivou comemorações públicas em Chicago, onde a história se passa.

Sucesso de público e crítica, o filme é uma boa comédia sobre a adolescência, contando as artimanhas de Ferris Bueller, que resolve gazear a aula num belo dia de verão. Para tanto, precisa convencer os pais de que está doente, driblar a irmã que pode denunciá-lo e não se deixar flagrar pelo diretor do colégio, que o tem na mira há muito tempo. Com a ajuda do melhor amigo Cameron, que não fora ao colégio por ser hipocondríaco e se considerar sempre enfermo, consegue que a namoradinha seja liberada das aulas, inventando que a avó dela havia falecido. Com a Ferrari 250 GT California Spyder, carro fabuloso da coleção do pai de Cameron, os três se entregam à aventura, indo a um restaurante de luxo, a um jogo de futebol americano, visitando o Art Institute de Chicago e participando de uma grande parada alemã, onde Ferris domina a cena, cantando e dançando. No final do dia, devem voltar para casa antes que os pais cheguem, o que gera outras peripécias.

Gostamos de pensar que a adolescência é uma idade de ouro, alegre e feliz, na qual todos estão “curtindo a vida adoidado”, como diz o título do filme. Sabemos que não é bem assim. Não são poucas as inseguranças, os sobressaltos, as angústias e medos que pululam nessa tumultuada travessia da vida infantil para a adulta.

A dupla Bueller e Cameron pode ser entendida como os dois lados de um mesmo personagem ou como representantes de duas polaridades da adolescência – o desafio às ordens estabelecidas pelos adultos ou a estrita obediência a essas imposições. Bueller debocha de todas as leis e derrota o diretor da escola, que sai completamente desmoralizado do embate. Cameron mostra uma submissão reverencial frente à figura do pai, uma conscienciosa obediência que contém a secreta rebelião.

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Os dois mostram também comportamentos opostos. Bueller é atrevido, insolente, manipulador, cheio de malandragem, gozando de grande popularidade junto a todas as tribos de sua escola (haja vista a campanha, realizada pelos colegas e exposta por toda a cidade, visando coletar dinheiro para ajudar nos custos de sua “doença”). Cameron, por sua vez, é cheio de problemas, dúvidas obsessivas, inseguro, hipocondríaco, inibido, tenso, responsável e cumpridor dos deveres.

O roubo do carro do pai de Cameron é cheio de significados simbólicos: o se apossar do falo paterno e assim assumir sua força, ao mesmo tempo em que expressa a rivalidade e desejo de destruir o poder paterno. Objeto intocável de desejo e desvelo do pai, Bueller e Cameron usam descuidadamente a inestimável Ferrari em sua aventura pela cidade e a deixam numa garagem, sem maiores preocupações.

A apoteótica cena da parada, onde Bueller consegue ser o protagonista, mostra a realização de fantasias adolescentes de fama e poder, o triunfo onipotente absoluto, o narcisismo plenamente satisfeito. Chama a atenção as duas músicas cantadas por ele. Uma é a melancólica Danke Schön, cuja letra fala dos agradecimentos à amada por tudo que foi vivido junto e da lamentação pela inevitável separação que está por acontecer. A outra é a orgástica Twist and Shout, uma intensa manifestação da alegria de viver. Assim se divide a adolescência, entre a tristeza pela infância perdida e a alegria pela descoberta dos prazeres da liberdade e do sexo. Tal como a letra de Danke Schön, Bueller, tem consciência de que logo mais tudo terá mudado. Não serão mais garotos irresponsáveis, estarão em universidades diferentes, cada um seguindo o próprio caminho. Daí a importância de seu lema, uma variante do carpe diem – “a vida passa muito rápido, se você não parar e olhar ao redor de vez em quando, pode perdê-la”.

Ao voltarem para casa, Ferris tenta fazer com que o marcador de quilometragem volte ao registro anterior, colocando o carro para andar em marcha a ré, como ingenuamente (?) prometera a Cameron. Mas logo constata que a manobra é ineficaz. Cameron se desespera e provoca o pior, a destruição total do carro. Com isso se confrontam com a realidade. Bueller, reconhecendo ser o culpado por tudo, se oferece para falar com o pai de Cameron. Mas este diz que cabe a si mesmo enfrentar o pai. Se ambos assumem naquele momento a responsabilidade e reconhecem que devem arcar com as consequências de seus atos, não é fácil manter tais propósitos. Apesar de constatarem que, tal como o marcador de quilometragem, a vida não pode rodar para trás, Bueller reluta em abandonar sua conduta regressiva infantil e avançar. Retoma suas dissimulações para enganar e escapar das leis dos adultos, do pai. Apenas Cameron mantém a disposição de resolver a situação de forma mais consequente.

Os adolescentes que saudaram o surgimento de Ferris Bueller há 30 anos são hoje adultos maduros, mas o filme não envelheceu. Seu encanto permanece intocado, apontando para a atemporalidade dos conflitos ali retratados.

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O fato de estar o DVD de Curtindo a Vida Adoidado à venda nas Lojas Americanas mostra que o filme se transformou num ícone da cultura pop, item de consumo de massa com forte apelo popular para os expectadores dos dias de hoje, adolescentes ou não.

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