Novo livro de Thomas Pynchon narra 11 de setembro e aborda internet

'O Último Grito' tem trama complexa e cheia de personagens, à moda dos livros do autor

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Por Paulo Nogueira
Atualização:
As Torres Gêmeas, palco do maior atentado terrorista da história dos Estados Unidos, em 2001, narrado também no livro 'O Último Grito', de Thomas Pynchon Foto: Keith Meyers/The New York Times

Thomas Pynchon é uma daquelas criaturas famosas por odiarem a fama – ou ao menos a exposição. Mas, ao contrário de outros VIP contemporâneos, a notoriedade dele não se alimenta apenas de si mesma: aos 80 anos, está entronizado no panteão literário dos EUA. 

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Só existem dez imagens disponíveis de Pynchon, inclusive um vídeo furtivo de 1997 da CNN, que gerou esta alfinetada do autor: "'Recluso' é um termo criado pela mídia para gente que não gosta de falar com repórteres." Ele serviu a Marinha, frequentou a Universidade de Cornell (onde teve aulas com Vladimir Nabokov), trabalhou na Boeing e escreveu o romance O Leilão do Lote 49 no México, emborcando himalaias de café, cigarros e x-burgers. Em 1974 o Pulitzer recusou-se a premiar aquela obra, considerando-a “ilegível”. Em compensação, o livro embolsou o National Book Award, para cuja cerimônia Pynchon enviou um humorista, o “professor” Irwin Corey (um “professor Raimundo” americano), que proferiu um discurso maluquete de agradecimento. Se brasileiro, a persona de Pynchon talvez fosse uma combinação de, digamos, Raul Seixas com Jânio Quadros. 

O Último Grito é o mais recente romance de Pynchon ( saiu nos EUA em 2013). Contexto: o mundo virtual e o 11 de setembro. Auschwitz só despontou na ficção americana 14 anos depois da libertação dos campos de extermínio nazistas – e numa obrinha mixuruca: Eva, de Meyer Levin. Se Adorno tinha perorado que era impossível poetizar o Holocausto, o scholar belga Kristiaan Versluys decretou que a aniquilação das Torres Gêmeas pertencia ao “indizível”. Bem, desde 2001 já proliferaram mais de 150 ficções sobre os atentados, assinadas por colunáveis como Don DeLillo, Julia Glass, William Gibson e Art Spielgman. 

A protagonista de O Último Grito é Maxine Tarnow,uma investigadora de fraudes. Ela fuça nos meandros informáticos da empresa tentacular de Gabriel Ice, um plutocrata das startups. Como sempre na Pynchonlândia, aqui não escasseia fabulação: peripécias gorgolejam e personagens saem pelo ladrão. Todos os cacoetes do autor batem ponto: arabescos conceituais abstrusos, manhattanites soltando a franga, vernáculo a dar com um pau, nomes estrambólicos, coincidências reincidentes.

Foto rara do recluso escritor Thomas Pynchon 

E a mãe de todos os pynchonismos: a teoria da conspiração. Quando um personagem pergunta: “Parece paranoia demais para você?”, o outro ronrona: “Paranoia é o alho na cozinha da vida. Nunca é demais.” É verdade que o universo digital (com seus perfis fakes, hackers, algoritmos abelhudos) parece quase um plágio das obsessões mais arcanas de Pynchon. Por isso mesmo a literatura dele corresponde a uma espécie de Suma Teológica das teorias da conspiração, uma miscelânea de gêneros que fazem uma viagem de circum-navegação na maionese: policial, ficção-cientifica, espionagem, refletindo a própria porosidade estrutural da paranoia. Afinal, qualquer mentecapto pode urdir uma teoria da conspiração. (Eu também tenho uma: Einstein foi assassinado pelo Máfia, porque ele sabia demais.)

O Último Grito tem todo um rodízio de guloseimas literárias. Os diálogos são vapt-vupt (e 70% do texto), salpicados de gírias apetitosas (esplendidamente traduzidas). O narrador sardônico esgrime estocadas de discurso indireto livre (quando a narrativa na terceira pessoa sugere que aquele momento visceral brota do personagem, e não do narrador). E o autor confia tanto em seu taco que a história toda (quase 600 páginas) é narrada no presente simples, mais aconselhável para circunstâncias febris, quando nem o narrador sabe como a cena irá acabar. 

Mas nem tudo é “vintage”. A representação da tecnologia é sempre o que caduca mais depressa nos “últimos gritos”. Os mirabolantes programas informáticos de 2001 (que Pynchon cita embevecidamente) hoje já são fósseis cavernícolas. Pior: de um autor deste pedigree, espera-se (pelo menos eu espero) uma espiadinha incisiva (ainda que com o rabo do olho) na prismática condição humana. Ora, aqui o que fica é algo como uma metafísica hodierna num thriller pop, segundo um geek. 

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O próprio 11/9 é tratado de modo quase pueril, sem uma migalha de “pathos” que o tema talvez exija. Sem falar na ignóbil hipótese do dedinho do Mossad (ou da própria Casa Branca) nos atentados (o que corresponde ao negacionismo neonazista, de que o Holocausto nunca existiu). 

O problema talvez seja a corda-bamba da farsa pynchonesca. Se a tragédia nos dá a bela ilusão da grandeza humana, e a comédia nos revela, afável ou brutalmente, a insignificância de tudo, a farsa – ficando em cima do muro e tentando ser carne e peixe – volta e meia cai do cavalo, na caricatura e na irrelevância. Gabriel Ice é mais um Dick Vigarista do que o Satã de Milton ou o Mefistófeles de Marlowe/Goethe/Thomas Mann.E tudo – de um traque ao Big Bang – se afigura maquiavelicamente maquinado pelas insidiosas, ainda que melífluas, “forças ocultas” (dá-lhe, Jânio Quadros), por vezes tão bobinhas quanto um esconde-esconde. 

Daí a ubiquidade embaraçosa das coincidências em O Último Grito. A ficção implica uma permuta constante entre, por um lado, a fixação de uma estrutura, de um padrão e de um fechamento, e, por outro, a imitação da aleatoriedade, das incongruências e do imponderável da existência. As coincidências, que nos espantam na vida real com simetrias que não esperávamos, na ficção são uma trapaça que compromete a verossimilhança. Consequentemente, esta imponente máquina narrativa – em que a engrenagem delirante da conspiração pretende tudo açambarcar – parece apenas ter um parafuso a menos. 

*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios)

Capa do livro 'O Último Grito', de Thomas Pynchon 

O Último Grito Autor: Thomas PynchonTradução: Paulo Henriques BrittoEditora: Companhia das Letras 584 páginas R$ 79,90

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