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O caminho da inclusão

Última década de crescimento econômico brasileiro foi obra do esforço e do trabalho da parte de baixo da população, que dinamizou a sociedade - e seu avanço é que pode garantir nosso futuro, afirma sociólogo

Por Jessé de Souza
Atualização:
Eleitora de Dilma em comício de campanha no Rio de Janeiro Foto: RICARDO MORAES/REUTERS

O Brasil de hoje está diante de nova escolha histórica que pode decidir seu futuro. Essa escolha se refere a dois modelos de sociedade distintos. O primeiro, que ainda é o dominante, foi gestado em outro momento decisivo de nossa história, um desses momentos raros em que a escolha entre caminhos alternativos possíveis se realiza e se congela depois em uma espécie de “destino” para as gerações futuras. Esse momento foi o golpe de 1964 e das forças que o apoiaram, que optou por construir um modelo de moderna sociedade de consumo para 20% da população. Essa opção histórica foi consolidada nos anos 1990 com o governo FHC. 

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O segundo modelo representa o anseio das forças derrotadas em 1964 por uma sociedade mais inclusiva. Modelo esse que vingou na esfera política nos últimos 12 anos, ainda que longe de deter a hegemonia na esfera pública que constrói a “opinião pública” e, portanto, não detém o efetivo controle da prática econômica e social. Afinal, existem limites claros para um Estado reformador em meio a uma sociedade conservadora. Ainda que esse segundo modelo tenha conseguido incluir, de modo precário e instável, outros 20% adicionais da população no mercado de consumo e reduzido formas extremas de miséria material, seu desenvolvimento se deu de modo errático, incompleto, sem efetivo planejamento e ao sabor das conjunturas. A fragilidade das conquistas realizadas pelo segundo modelo é explicada pela manutenção da força social e econômica do modelo anterior, as quais se mantiveram intocadas mesmo depois da eventual perda do poder político. 

Para que compreendamos a força inabalada do modelo dominante, mesmo com a perda eventual do poder político, é preciso compreender como funciona a íntima e orgânica relação entre economia e a política. A pedra de toque para que possamos perceber esse jogo, sempre mantido cuidadosamente nas sombras, é o mote da “corrupção e ineficiência estatal” contraposta à suposta virtude e eficiência do mercado. Essa é, na realidade, a “única bandeira” de legitimação do modelo excludente de sociedade ainda no poder real. Esse é, afinal, o único pretexto por meio do qual os interesses mais privados do 1% mais rico podem ser travestidos em suposto interesse geral. 

Na verdade, o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de “corrupção organizada”, começando com o controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: criminoso passa a ser o funcionário do Estado ou o batedor de carteira pobre enquanto o especulador de Wall Street - a matriz da Avenida Paulista - que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista minoritário embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários. Enquanto os primeiros vão para a cadeia, o segundo, que às vezes arrasa a economia de países inteiros, ganha foto na capa da Time como financista do ano. Quem é que ganha, na verdade, com a corrupção tornada legal do mercado e celebrada como mérito? É isso que o cidadão feito de tolo não vê. No Brasil, inclusive, a tolice é ainda muito pior que em qualquer outro lugar. Nenhuma sociedade complexa é tão absurdamente desigual como a nossa, na qual quase 70% do PIB é ganho de capital - lucro, juro, renda da terra ou aluguel - e está concentrado no 1% mais rico da população. Por outro lado, só cerca de 30% cabe aos salários dos restantes 99%. Nas sociedades capitalistas mais dinâmicas da Europa, como França e Alemanha, essa relação é inversa. Nós, brasileiros, somos pelo menos o dobro mais tolos que os europeus. Essa deveria ser a real vergonha nacional. 

Mas tem muito mais. Essa transferência grotesca de riqueza entre nós é realizada por serviços e mercadorias superfaturados - cobrados pelo mercado e não pelo Estado - com as taxas de juro e de lucro mais altas do mundo, que são cobradas pelos bancos e pelas indústrias cujos lucros e juros vão para o 1% mais rico. E quem são as classes cujos indivíduos são feitos de tolos senão aquelas médias e trabalhadoras ascendentes, precisamente as que consomem os carros com o dobro da taxa de lucro dos carros europeus; pagam taxas de juro estratosféricas para bancos em qualquer compra a prazo; e serviços de celular dos mais caros do mundo, ainda que o serviço seja incomparavelmente pior? Quem é feito de tolo aqui senão partes significativas das classes médias e trabalhadoras ascendentes, muitas das quais defendem o Estado mínimo e o mercado máximo e pagam preços máximos por produtos e serviços mínimos e de baixa qualidade a capitalistas que possuem monopólios para produzir mercadorias e serviços de segunda categoria? 

É essa “corrupção organizada” do mercado que “aparece” como milagre do mérito de capitalistas que na verdade herdaram o privilégio e nunca correram nenhum risco. E é essa visão das coisas que é difundida na esfera pública. Se pensarmos duas vezes, no entanto, percebe-se que o Estado é, pasme-se, o único lugar onde a corrupção ainda é visível como tal e tem, portanto, alguma possibilidade de controle real. 

Decisivo, também, é o papel das frações majoritárias e conservadoras da classe média de “verdade” entre nós, aquela que tem um estilo de vida e padrão de consumo semelhante a suas irmãs europeia e americana. Essa classe média é a sócia menor do modelo de sociedade para 20% da população e ocupa os cargos de prestígio do mercado superfaturado e monopolizado. Essas frações são a “tropa de choque” do 1% de endinheirados não só porque o defendem na prática nos tribunais, nas salas de aula, nos jornais e em todas as dimensões do cotidiano onde a defesa dos privilégios dessa pequena minoria e de seu sócio menor está em jogo; ela também é quem sai à rua, como nas manifestações de junho de 2013, sequestrando as demandas populares do início dos protestos em nome da eterna corrupção só da política, para defender os interesses da classe de endinheirados que a explora. Afinal, esse 1% é a única parcela que efetivamente tem algo a ganhar quando se encurta o Estado e se mercantiliza toda a sociedade. Nas sociedades que aprenderam a mitigar a produção de desigualdades que o capitalismo estimula, foi o Estado que retirou a saúde, a educação e a previdência das mãos do mercado, de modo a garantir um mínimo de condições básicas de competição social mesmo para quem não nasceu em berço privilegiado. Demonizar o Estado é o pretexto perfeito para quem ganha com a mercantilização total da sociedade, ou seja, o mesmo 1% que já controla toda a riqueza. Mas a tolice das classes médias e frações ascendentes que compram esse discurso como se fosse seu não explica a raiva e o ódio ao uso do Estado - ainda que de modo parcial, incipiente e inconcluso - para os interesses da maioria esquecida da população brasileira. 

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Isso acontece hoje em dia num grau muito mais alto, posto que essa classe, agora, teme por seu lugar de privilégio devido ao encurtamento do espaço social com as classes populares que foi a principal obra dos últimos governos. O Brasil de hoje ainda marginaliza 60% de sua população das benesses da sociedade moderna, mas o Estado ousou aumentar o número de incluídos no mundo do consumo de 20% para 40%. É a raiva ancestral de uma sociedade escravocrata, acostumada a um exército de servidores cordatos e humilhados, que explica a tolice dos que compram a ideia absurda de mais mercado no país do mercado já mais injusto e concentrado do mundo. A raiva, no fundo, é contra o fato de muitos desses esquecidos estarem agora competindo pelo espaço antes reservado à classe média, como vimos nos “rolezinhos”, nas reclamações dos aeroportos cheios e na perda dos valores de distinção com relação à “gentinha” não mais tão cordata e humilhada. Sem o ressentimento e o desprezo ao populacho - no fundo, o medo da competição social revertido em agressão -, não há como entender que tanta gente seja manipulada por um discurso hoje tão descolado da realidade como o da virtude do mercado e demonização do Estado. 

Se existe algum bem na polarização das últimas eleições é que ela mostra os conflitos reais que racham a sociedade contemporânea brasileira: a contradição entre as classes sócias no projeto de construção de uma sociedade para 20% e o projeto inconcluso e incipiente de um Brasil para a maioria da população. A segunda “abolição da escravatura” - hoje não mais de uma raça, mas de uma grande classe de excluídos - proposta por Joaquim Nabuco há mais de cem anos é hoje mais atual que nunca. 

Esse é o núcleo do modelo alternativo de sociedade para o Brasil moderno. Central para o sucesso do projeto é que tanto as frações progressistas da classe média - elas também existem - quanto as que hoje são feitas de tolas por seus verdadeiros algozes compreendam que têm muito mais a ganhar com um Brasil mais inclusivo. 

A última década de crescimento econômico brasileiro, depois de 30 anos de estagnação, foi obra do esforço e do trabalho da parte de baixo da população, que logrou dinamizar a economia e a sociedade como um todo. Com um mínimo de estímulo, foram as classes populares voluntariosas que encheram de otimismo e vigor uma sociedade estagnada e decadente. O futuro do Brasil, e muito especialmente das classes médias e ascendentes, não aponta para a aliança subordinada com os endinheirados em que o lugar do otário e do esperto já está pré-decidido. Aponta para o novo, para o nunca realizado que é a verdadeira cura para a doença brasileira: o câncer do Brasil para poucos. 

Para isso não é preciso muito: só um pouquinho mais de reflexão e generosidade e um pouquinho menos de mesquinharia e tolice. 

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Jessé de Souza, doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF), é autor de 'A Ralé Brasileira: euem é e como vive' (Humanitas)

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