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O consumo do mundo

Pelo andar da carruagem, ainda assistiremos ao descarte das novíssimas arenas, que se espraiam da Amazônia à Sibéria, do Pantanal ao Golfo Pérsico

Por Guilherme Wisnik
Atualização:

Por que o país que sedia uma Copa do Mundo ou Jogos Olímpicos é obrigado a construir tantas “arenas” esportivas inteiramente novas? Por que tantas sedes, isto é, tantas cidades envolvidas? E por que, além disso, tem que realizar inúmeras outras obras civis de apoio para atender os requisitos de uma portentosa operação logística? E, ainda, por que devemos aceitar o fato de que toda essa pesada carga de investimentos, cujo uso posterior é via de regra duvidoso, seja nomeada de “legado”? Presente de grego? Estamos vendo o resultado disso em países que sediaram recentemente eventos desse porte, como a Grécia (Olimpíada de Atenas 2004) e Portugal (Eurocopa 2004). Portugal, aliás, estuda a demolição de pelo menos três desses estádios novíssimos, sempre vazios e com altos custos de manutenção.

No Catar: projeto de estádio com marina para iates mostra o que hoje se entende por democratizar o futebol Foto: Reprodução

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Lembro que em 1986 o México realizou, sem maiores sustos, uma excelente Copa do Mundo, embora tivesse sofrido um terrível terremoto nove meses antes. Por que é que as coisas mudaram tanto nesse meio tempo? O fato é que Copas do Mundo e Olimpíadas deixaram de ser eventos eminentemente esportivos para se tornarem, acima de tudo, grandes operações imobiliárias alicerçadas pelo seu alcance midiático. Daí a construção de estádios na Amazônia, no Pantanal, na Sibéria (Rússia 2018) e no deserto do Golfo Pérsico (Catar 2022), que provavelmente precisarão de sistemas de aquecimento e refrigeração. O discurso da descentralização do evento, acompanhado de todos os seus requisitos em termos de obras civis, significa nada mais que a expansão de novas frentes imobiliárias, envolvendo cartolas corruptos, empreiteiras, construtoras, políticos locais etc. Na base de tudo isso está a associação mágica entre capital financeiro e mercado imobiliário, lugar onde se formam as bolhas econômicas do capitalismo globalizado.

Como já mostrou David Harvey, a relativa estabilidade do sistema capitalista mundial tem dependido, no último século, da absorção do excedente produzido por meio das indústrias bélica e da urbanização. Esta última, claramente financiada por instituições financeiras através de títulos de dívida. A atual hiperurbanização chinesa, por exemplo, é um sinal disso, realizando obras de demolição e de construção em escala fáustica de modo a gerar emprego e ativar papéis que representam “mercadorias e futuros”, mesmo que a custo de construir cidades fantasmas, isto é, desabitadas, praticamente zerando o seu valor de uso em função de um superinflacionamento irracional do seu valor de troca.

Em que mundo vivemos? Em um mundo no qual a geração de valor (capital) se desprendeu do trabalho, isto é, da produção concreta das coisas, e a especulação se tornou um valor supremo. Dubai, aliás, é o símbolo máximo disso. Um lugar torridamente inóspito, mas que se transformou num dos maiores destinos turísticos do planeta pela presença abundante do petróleo. O capital se autorreproduz na forma de ilhas artificiais que copiam o próprio mapa múndi em uma espécie de simulacro em espiral.

Voltando ao nexo esportivo, foi justamente a “bem-sucedida” Olimpíada de 1992 em Barcelona que exportou para o mundo o pacote do chamado planejamento estratégico catalão, segundo o qual as metrópoles se habilitam a competir no mercado global de cidades vendendo suas imagens por meio de megaeventos midiáticos. Dez anos depois o Japão construía estádios cobertos como o Sapporo Dome, em que o gramado natural se movimenta para fora dele de modo a receber a luz do sol. Foi a primeira Copa asiática.

Com o fim da Guerra Fria e o arrefecimento da corrida armamentista nos anos 1990, coube à megaurbanização em escala planetária o papel de estabilizador das crises sistêmicas do capitalismo. Minha impressão é que estamos consumindo o planeta de forma alucinada e irreversível, transferindo o conceito de obsolescência programada das mercadorias de uso cotidiano para a própria terra do planeta. Hoje já não são apenas as geladeiras e os computadores que são feitos para serem trocados de forma cada vez mais acelerada. São os edifícios, os bairros e as próprias cidades, assim como os campos, as montanhas e os desertos, que precisam ser destruídos, abrindo terreno para novas frentes de expansão imobiliária. Afinal, a natureza da especulação é predatória.

Não por acaso, é exatamente nessa época que a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos mudam de natureza, e suas instituições se tornam poderosíssimas na economia mundial. Pelo andar da carruagem, a Copa de 2026 acontecerá na Antártida, onde, de fraque, os cartolas serão pinguins. De forma espetacularmente suicida consumimos as coisas de maneira cada vez mais incessante e voraz, destruindo o mundo à nossa volta em nome da ilusão de eterna abundância. “Perecibilidade é saber que vamos morrer”, escreve o artista plástico Cildo Meireles em um pequeno texto aforístico, enquanto a “descartabilidade é suicidarmo-nos por causa disso”, completa. E conclui: “Not to be or not to be, eis a questão”.

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GUILHERME WISNIK É ARQUITETO E PROFESSOR DA FAU-USP

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