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O muro que divide o Brasil

As chapas de aço que rasgam ao meio a Esplanada dos Ministérios separam as 300 mil pessoas esperadas para acompanhar a votação do impeachment em Brasília e revelam que a civilidade definitivamente morreu no Brasil

Por Luísa Martins e BRASÍLIA
Atualização:

Um muro rasga a Esplanada dos Ministérios ao meio e delata que a civilidade, antes em agonia, morreu. As grandes chapas de aço olham a todos de cima – são 2,20m de altura – e gritam, sem deixar dúvidas: no Brasil, há dois microcosmos que não sabem conviver.

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Materializa-se a metáfora de um país dividido. Mais um. Caem as fronteiras para os mercados, mas não para os seres humanos. Sob o pretexto da paz e da ordem, barreiras são erguidas para conter os estrangeiros, para delimitar modelos econômicos, para isolar inimigos religiosos e antagonistas políticos. São feitas de concreto, ferro, areia, arame farpado. Aço.

“Não é para dividir. É para proteger”, justifica um policial que supervisiona a instalação dos materiais ao longo de mais de um quilômetro de grama verde, como quem pede desculpas por, em nome da segurança, manchar os traços dos arquitetos que previram apenas a beleza monumental. Era terça-feira. Exatamente uma semana antes, em uma reunião formal no gabinete do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o governo do Distrito Federal achou que a melhor solução para evitar confrontos estava clara. Ora, algo melhor que um muro?

Cerca de R$ 8 mil e um “Comitê de Pacificação” dariam conta de separar mortadelas e coxinhas, vermelhos e verde-e-amarelos, petralhas e golpistas. Não existe mais o termo genérico “manifestantes” – é um lado ou outro, como um muro deve ser.

  Foto: DIDA SAMPAIO | ESTADÃO CONTEÚDO

Liberdade para separar. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) recrutou para construí-lo quem entende de viver entre paredes, mas nunca se acostuma. À luz do sol escaldante que se joga do imenso céu de Brasília, detentos do complexo penitenciário da Papuda experimentam a liberdade enquanto edificam um instrumento de separação. “É assim que tem que ser, senão o bicho pega”, diz um deles, enquanto seca o suor da testa.

Outro presidiário conta que se sente útil. Está feliz por gozar de mais um dia de trabalho na rua – a cada três, ganha um de remição. Pergunto se lhe agrada a ideia do muro. “Preferia ajudar a fazer uma escola, um hospital”, resume, antes de posicionar a estaca de madeira que mantém de pé uma das chapas de aço. Ossos do ofício.

O muro tatua na testa do brasileiro uma série de rótulos. Somos intolerantes, brutos, capazes de cometer atrocidades contra aqueles que estão de fora da nossa bolha, digamos, ideológica. Tanto é verdade que, além do muro, haverá grades. Posicionadas a 70 metros do muro, para lá e para cá, é só depois delas que o povo poderá hastear suas bandeiras de apoio ou crítica ao governo da presidente Dilma Rousseff.

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Tento entender o croqui imaginário que o policial descreve enquanto aponta para a cena. Ele apela à didática: “Para que time você torce?”. Sou gremista, senhor. “Já foi em algum jogo contra o Internacional?”. Já, sim, senhor. “E nunca viu arremessarem, de ambos os lados, garrafas de vidro na torcida adversária, com o intuito de machucar mesmo?”. E então a suspeita se torna oficial: viramos trogloditas, agressores em potencial, pessoas que, com facilidade, atirariam objetos cortantes para o outro lado do muro – ou, talvez pior, usariam o próprio muro como arma.

E tal qual um clássico do futebol, não dá para torcer para os dois rivais. Isto o tapume de aço também decreta, em modo imperativo: escolha. Escolha quem você quer ver ganhar e acompanhar na “volta olímpica” pelo Eixo Monumental, depois do resultado. O problema é que, embora pareça à primeira vista, política não é todo este Fla-Flu – mas o muro da Esplanada é muito estreito para comportar os indecisos. Cabe, no máximo, as patas de uma corujinha que, na quarta-feira, pousou ali para observar. A ave é símbolo de sabedoria, dizem.

Nos dias que antecedem um domingo histórico, a desunião está dada. Não lembramos de 2013, quando as manifestações eram mais plurais. Do lado esquerdo, quem defende a permanência de Dilma. Do direito, quem a quer fora do poder (se tem quem argumente que os conceitos de direita e esquerda, de tão embaralhados, talvez não existam mais, o muro responde: existem, sim). Do lado esquerdo, os governistas fazem uma espécie de romaria diária que vai do Teatro Nacional, onde se concentram, até o Congresso, onde tudo acontece – até bolão. Do lado direito, a oposição havia fincado fotos dos deputados no gramado, com tarjas que indicavam o voto de cada um em relação ao impeachment, formando uma espécie de placar. A polícia mandou tirar. “Material provocativo.” E então restaram os vendedores de dindin (suco vendido em saco plástico) e água mineral. “Não temos partido, estamos aqui porque tem sombra.”

O consenso possível. Há um alento em meio ao caos: o muro não é unanimidade. E as críticas vêm de ambos os lados, mostrando que, em algum nível mínimo, o consenso ainda é possível. Nas redes sociais, onde a polarização do brasileiro é tão evidente quanto sua capacidade de fazer piadas, chegaram a sugerir “uma saudável partidinha de futevôlei para resolver as diferenças” e a clamar para que os artistas de rua grafitassem todo aquele cinza – pelo menos daria um colorido à feiura do aço. A polícia não deixou.

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À direita do muro, escrito a pincel atômico preto, um cartaz pede pelo fim da segregação. Mas poucos passos a frente, em outras folhas coladas com fita adesiva, o que se lê é praticamente o oposto: “Sumam de nossas vidas, traidores da nação”. A caligrafia parece ser a mesma.

Um muro é um bom artifício para fazer sumir. Quando há um paredão, o outro – e o que pensa o outro – está oculto, mas não necessariamente protegido. O escritor canadense Marcello Di Cintio, autor do livro “Muros, viagem ao longo das barricadas” (tradução livre), sustenta que a sensação de segurança é pura ilusão. Onze milhões de imigrantes mexicanos vivem nos Estados Unidos ilegalmente, depois de terem burlado as restrições da fronteira que separa claramente o precário e o moderno – aquela que o magnata Donald Trump, se eleito presidente, quer ampliar. Evitaria a passagem de “gente ruim”. Na Capital Federal, quem está do outro lado também é “gente ruim”?

As chapas de aço que demarcam o apartheid político brasileiro têm sido comparadas com o emblema máximo da batalha entre socialismo e capitalismo: o Muro de Berlim. Inclusive nas justificativas para sua construção. “A solução não é muito linda, mas mil vezes melhor do que uma guerra”, opinou o então presidente dos EUA, John F. Kennedy, assim que soldados começaram a separar as Alemanhas Oriental e Ocidental, em 1961. É o principal argumento de quem defende a divisão da Esplanada. “Bonito não é, mas se é pra prevenir alguma morte...”, divaga um ambulante às portas do Congresso, em uma fala que denota o tom animalesco que ronda Brasília nos últimos dias.

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O Muro de Berlim foi derrubado há 27 anos. Mas a teoria do filósofo moçambicano Severino Ngoenha é a de que seus fragmentos foram simbolicamente guardados pelo homem, à espera de outros momentos para erguer novos muros. No Rio de Janeiro, por exemplo, governantes cogitaram edificar paredões de alvenaria para conter a expansão das favelas – ou, talvez, para tornar invisível uma parte não tão maravilhosa da cidade.

É que, apesar de se vestir de bonzinho, um muro sacraliza a desigualdade e, no caso específico do de Brasília, convida à convulsão social a partir do ponto em que ele termina, na Rodoviária do Plano Piloto. A Secretaria de Segurança Pública garante que está preparada tanto para impedir quanto para reprimir a confusão, com um contingente de 3 mil policiais na Esplanada – nos espaços entre muro e povo – e outros 1,5 mil nos quartéis, de prontidão para o caso de “transtorno”. São esperadas 300 mil pessoas para acompanhar a votação do impeachment do lado de fora do Congresso Nacional.

Democracia sem diálogo. O muro de Brasília traz outra inscrição em pincel atômico: “Deste lado, ainda tem democracia”. Quem escreveu esqueceu que para ela existir é imprescindível a dialética, o caminho entre as ideias, o diálogo e compreensão – dois artigos cada vez mais raros nas prateleiras da consciência.

Basta acessar a internet e seu caudal de insultos, cobranças, ataques, calúnias, invenções. Coxinhas burgueses e privilegiados versus mortadelas ladrões e sustentados pelo governo. “Você descaracteriza a parte humana do seu adversário, transformando aquele indivíduo em uma organização criminosa, em um corpo resistente e que você precisa destruir”, analisa o filósofo Roberto Romano, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O muro é, para ele, o reflexo de uma ética perversa que se acumulou após duas ditaduras no Brasil – a de Vargas (1937-1945) e a que começou com Castello-Branco e terminou com Figueiredo (1964-1985). “Não se pode discutir abertamente, porque discutir significa quebrar a ordem.”

No mundo perfeito, o respeito como bandeira a ser empunhada não precisa de barreiras. Neste domingo, estão todos sob o mesmo céu de Brasília e sob a mesma angústia em relação ao futuro. Mas há uma divisória para lembrá-los de que são desafetos mútuos. Um muro que assina embaixo do que Hobbes chamou de “estado de natureza”: o homem é o lobo do homem. Isolado, tem poder ilimitado de força para assegurar violentamente o que lhe pertence – nem que seja a utopia.