O nocaute que faltou: na cidade natal de Muhammad Ali, a luta é contra o racismo

A cidade natal de Muhammad Ali é ainda hoje dividida pelo racismo – em Louisville, marcas de um adversário que nem mesmo o maior boxeador de todos os tempos foi capaz de derrubar

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Foto do author Gonçalo Junior
Por Gonçalo Junior , LOUISVILLE e KENTUCKY
Atualização:

Timothy Montgomery não tem vizinhos brancos. Ele até interrompe o balanço da cadeira envernizada e franze a testa já enrugada para uma busca refinada na memória. Esse operador de máquinas aposentado sempre morou em Louisville, em frente ao número 3302 da Grand Avenue, casa onde nasceu Muhammad Ali. Montgomery desfaz a careta e desiste. Nada de brancos. A terra natal do maior boxeador de todos os tempos é uma cidade dividida. A segregação foi um adversário que Ali não nocauteou.

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Louisville é a cidade mais populosa do Kentucky, estado sulista que lidera a produção norte-americana de fumo, trigo, soja e milho por causa de suas 90 mil fazendas. Lúvil, como pronunciam os nativos, tem 760 mil habitantes, os brancos somam 74% e os negros, 20%. O principal passeio é navegar pelo rio Ohio, que corta a cidade. Em algum lugar de suas águas limpinhas, está a medalha de ouro que o lutador conquistou nos Jogos de Roma de 1960 – mas ainda não é hora de falar disso.

Outra linha divisória importante, essa não aparece em todos os mapas, é a Ninth Street (Rua Nove). Construída lá nos anos 60 como uma ampla avenida, que depois virou uma via expressa, a Rua Nove é uma fronteira entre o lado oeste, predominantemente negro, e o lado leste, de maioria branca. Os mais antigos sussurram que ela era chamada Muro de Berlim.

  Foto: LUCY NICHOLSON | REUTERS

Dados do último censo dos EUA mostram a ferida. Bairros como Park Hill, Westover e Califórnia são negros; outras áreas da cidade, como Indian Hills e Deer Park, são dos brancos. “Isso significa segregação racial”, avalia Cathy Hinko, diretora executiva da Metropolitan Housing Coalition, entidade que promove a igualdade principalmente na questão habitacional.

Esse tema é doloroso para os moradores, que mantêm a guarda levantada. A reportagem do Aliás não foi discriminada em nenhuma das duas bandas da cidade, mas, pela reação atravessada de alguns moradores, falar de raça é falta de modos. Muitos falaram de Ali, do rio, das fazendas, mas encerram o papo quando ela se esgueira para a cor de pele. Nesse contexto, a Rua Nove não é bem uma fronteira, está mais para cicatriz coletiva e compartilhada.

É um trauma ligado à estrutura habitacional da cidade. Por volta de 1940, políticas de renovação urbana na região central substituíram os prédios populares e edifícios mais antigos por centros governamentais e empresariais. Quando os moradores mais pobres, quase todos negros, foram empurrados para longe e começaram a se acomodar na região oeste, começou um movimento inverso, que ficou conhecido como fuga dos brancos. Durante duas décadas, eles se mudaram para o leste.

A divisão em Louisville não é uma novidade, trata-se de uma notícia envelhecida. O que incomoda a gente de lá é a perpetuação, a maneira como o Muro de Berlim nem se abala com os programas de integração. Em 1960, Ali conquistou a medalha de ouro na categoria de meio-pesado (até 79,4 kg), batendo na final o polonês Zbigniew Pietrzykowski. Na volta, foi recebido por uma multidão eufórica. A festa, no entanto, foi aparente. Na sua autobiografia, o próprio lutador conta que o ouro não mudou sua condição de cidadão de segunda classe em sua terra natal. Ele entrou em um restaurante, pediu um hambúrguer, mas o empregado se recusou a servi-lo. O campeão ainda argumentou, eu sou Cassius Klay, ganhei uma medalha de ouro no boxe, sou de Lúvil, mas nada de pão com carne.

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De raiva, jogou a medalha no rio Ohio, aquele que divide a cidade. A medalha de substituição só veio em 1996, em Atlanta. Esse episódio marcou para valer sua luta pela igualdade racial, uma das inúmeras passagens que merecem marca-texto em sua biografia. Um parêntese histórico: a Lei dos Direitos Civis, que pôs fim à segregação racial e permitiu que negros e brancos frequentassem os mesmos ambientes nos Estados Unidos, data de 1964. Completou, portanto, 50 anos recentemente.

“Embora o sistema de segregação baseada em leis tenha se desestruturado nos anos 1960, muito por conta da atuação dos movimentos pelos direitos civis que teve como grande liderança Martin Luther King Jr., até hoje há racismo e segregação, não apoiados em leis, mas na dinâmica social. Isso pode ser visto nos números e casos de violência policial contra negros e negras, taxas de ingresso no ensino superior, renda e representações estereotipadas sobre esse contingente da população”, opina o professor Márcio Macedo, PhD em Sociologia pela Universidade de Nova York e professor do curso de Jornalismo da FIAM-FAAM.

Quase sessenta anos depois do “não” no restaurante, novamente uma multidão saudou Ali nas ruas de Louisville em seu funeral no início do mês. Milhares aguardaram até três horas nas calçadas, passarelas e guardrails das avenidas para jogar uma rosa no carro fúnebre. Ou encostar a mão na traseira do veículo preto, tirar uma foto, socar o ar como o punho fechado ou só para gritar “Ali”. As palavras mais usadas no funeral, por pesos pesados como o ex-presidente Bill Clinton, foram compaixão e união. Ali é o elo. Para Marcelo Zorovich, professor de Relações Internacionais da ESPM, os esportistas podem minimizar a tensão racial nos Estados Unidos e cita o exemplo de Michael Jordan, o Pelé do basquete.

Para Pamela Meanes, presidente da Aliança contra o Racismo e Políticas de Repressão do Kentucky, o funeral foi um momento de exceção. Brancos e negros não costumam olhar na mesma direção. “Nos grandes acontecimentos, ou mesmo quando acontecem problemas sérios, o legado de Ali é usado para unir a cidade, mas ainda temos muito a avançar na questão racial.”

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Outro morador usou a seguinte imagem para descrever o funeral de Ali. “Um quadro colorido em uma parede ainda no reboco.” Márcio Macedo classifica o papel dos atletas negros como ambivalente. “Por um lado, fazem com que a população negra tenha mais visibilidade na mídia, o que ajuda a educar os mais jovens para sua presença na sociedade. Por outro lado, podem ajudar na reelaboração de ideias racistas sobre a corporalidade negra, ou seja, pensamentos que afirmam uma suposta maior potencialidade dos negros e negras para as atividades físicas em detrimento das intelectuais.”

O vendedor Jonathan Brade reconhece que a parte negra da cidade ainda é subdesenvolvida, mas diz que não dá para colocar tudo na conta racial. “Temos uma divisão entre pobres e ricos, não entre negros e brancos.” Depois de perambular em várias ocupações, ele conta que precisa de dois empregos para pagar as contas. Vende artigos de informática e trabalha em uma farmácia à noite. Zorovich defende uma posição semelhante. “Nos últimos anos, podemos perceber o crescimento da pobreza em alguns estados norte-americanos, fato que não está diretamente relacionado aos afrodescendentes, mas sim ao conjunto da população”, afirma.

Outra digressão histórica. A palavra sulista, lá no comecinho, traz outra moldura para a conversa. Kentucky se localiza em uma região onde os conflitos raciais são evidentes por conta do impacto da escravidão negra e da segregação institucionalizada até por volta de 1960. As diferenças do Sul em relação ao norte, mais industrializado e com trabalho livre, levaram à guerra civil (1861-1865), que deixou mais de 600 mil soldados mortos e destruiu grande parte da infraestrutura do sul do país. A escravidão foi abolida, o que deu início ao lento processo de retomada dos direitos civis dos escravos libertos.

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Existem esforços para que as coisas mudem, quase todas bancadas pelo poder municipal. Uma delas é oferecer ônibus gratuitos para as crianças estudarem em escolas mais distantes, fora do seu gueto. A encrenca é convencer os pais. Uma política habitacional oferece imóveis subsidiados e a preços acessíveis em toda a cidade, também para diminuir as panelinhas. Um dos eventos mais importantes da série de homenagens ao lutador foi dirigido para as crianças. Centenas delas participaram de atividades artísticas e educativas, todas lúdicas, no Kentucky Center for the Performing Arts. A ideia era que conhecessem melhor o grande filho da cidade e levassem adiante as coisas nas quais o campeão acreditava. Foi uma beleza ver alguns aqueles pingos de gente dizendo que era preciso “flutuar como uma borboleta e picar como uma abelha”, a maneira como o próprio definiu seu estilo de lutar.

Por enquanto, esses avanços, dentro e fora de Louisville, tiveram o efeito do soco de um peso-pena. Especialistas afirmam que a figura de Barack Obama, primeiro presidente afro-americano da história do país, tem um impacto simbólico poderoso, mas as políticas de integração racial de seu governo foram modestas. Hoje, não existem programas que enfrentem de forma eficaz a violência policial contra negros e a desigualdade econômica. Aos 75 anos, Montgomery traduz o discurso acadêmico para sua realidade, pão, pão, queijo, queijo e diz que ele se acostumou a não ter vizinhos brancos, mas que espera que tudo seja diferente para seus netos e bisnetos.

  Foto: LUCY NICHOLSON | REUTERS