O sal por testemunha

Em 2014, Ricardo Hantzschel conquistou o Prêmio Marc Ferrez pelo projeto Sal. O trabalho se tornou um livro homônimo que será lançado em 28 de abril

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Por Christian Carvalho da Cruz
Atualização:

O sal foi moeda e pagamento na Roma antiga, salário. Estopim de protesto contra o jugo britânico na Índia, a Marcha do Sal de Gandhi. Foi conservante de alimentos na era pré-geladeira. Garantia de ruína às terras de Tiradentes, já morto e esquartejado. O sal salva e condena. Nas mãos do fotógrafo paulistano Ricardo Hantzschel, de 51 anos, virou um resgate. Dele mesmo e da técnica fotográfica primordial. 

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Em 1834, o inglês William Henry Fox Talbot foi o primeiro a obter uma imagem fotográfica aceitável “impressa” num papel embebido em solução de cloreto de sódio e pincelado com nitrato de prata. Por 50 anos, foi o papel fotográfico básico. 

Hantzschel recuperou a nobreza da técnica ao documentar as salinas e os salineiros de pele curtida na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Aproximou a fotografia da pintura e da gravura, a imaginação da realidade. “Suas imagens nos fazem refletir sobre a efemeridade das novas tecnologias, do tempo e das relações humanas”, bem anotou a crítica Rosely Nakagawa no livro Sal, que Hantzschel lança daqui um mês.

Na obra, além do percurso criativo que percorreu em cinco anos de idas e vindas às salinas, o fotógrafo, que também é professor, ensina generosa e detalhadamente como confeccionou suas imagens banhadas em sal, rugas e aridez.

De onde veio o interesse pelo sal?

Há 15 anos eu viajava de carro para Búzios (RJ) e passei na frente das salinas da região de Araruama, Praia Seca e Arraial do Cabo. Senti uma enorme atração pelo lugar. Geometricamente era o cenário mais incrível que eu já tinha visto. Os quadrados, os montes de sal, os cata-ventos, os galpões. Foi amor à primeira forma. Aquilo ficou comigo por dez anos. Passei a chamar de “sal” o local e tudo que ele representou pra mim naquele primeiro contato. “Preciso voltar ao sal”, repetia. Então, em 2010, me separei, fiquei na pior e resolvi fazer algo a respeito. Me lancei ao sal.

Em busca do poder curativo dele?

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De certa forma, sim. Eu precisava de uma depuração - palavra que tem a ver com o processo fotográfico também. A partir de 2010, foram cinco janeiros indo às salinas. Eu voltava pra casa e tinha um ano inteiro pela frente para pensar, depurar o que tinha fotografado e vivido lá. O tempo é tudo. E imagem é imaginação. Hoje, na correria, abrimos mão de imaginar. E isso é de uma pobreza atroz, existencialmente falando. Queremos imagens prontas, não queremos conquistá-las, imaginá-las, porque fotografar virou uma maneira de possuir. A internet nos legou um tempo pequeno. De avião, trocar de mundo leva dez horas. Na internet, um segundo. Mas nossa capacidade de nos adaptarmos a essa troca continua igual. Isso nos achata como seres humanos, é uma violência. Por isso prefiro continuar imaginando. Prefiro o tempo grande. Quando deixei de ser um intruso nas salinas, o que só aconteceu depois de muitas idas, cheguei a deixar uma pinhole (câmera artesanal sem lente que captura imagens através de um orifício do diâmetro de uma agulha) dentro de um galpão durante um ano inteiro, a fim de registrar o acúmulo do sal. Sem dizer que ampliar uma única imagem em papel salgado leva no mínimo três horas.

Você começou o projeto já querendo usar o sal na ampliação das fotos?

Não. Quando me encantei pelo sal, minha ideia era só conhecer o lugar e as pessoas. Mas coincidiu de, no meio de 2013, por causa de minha atividade como professor, eu estar pesquisando processos fotográficos históricos, entre eles o papel salgado. Aí, claro, uma hora deu o estalo: e se eu incorporasse no processo o sal que estou fotografando? Enchi um saquinho nas salinas e comecei a testar. O projeto cresceu. 

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Quem são os trabalhadores do sal?

No geral, são nativos ou pessoas que se fixaram lá há 40, 50 anos. Poucos são donos da própria gleba. Trabalham como meeiros e moram nas mansões dos patrões, que, depois de certo apogeu nos anos 1980, abandonaram o local com a queda da atividade. O principal problema é o preço. Uma tonelada de sal hoje vale R$ 50 - chegou a valer o equivalente a R$ 500. Aquelas salinas são as primeiras do Brasil, criadas no século 18 com a chegada de d. João VI. Hoje há concorrência do sal produzido no Rio Grande do Norte e no Chile. Além disso, a chuva mais abundante e o esgoto reduziram a salinidade da laguna de Araruama. Por fim, os salineiros não conseguem mais fazer sucessores. Seus filhos querem trabalhar noutras coisas, noutros lugares. Então, eu diria que, naquela região, a atividade está com os dias contados.

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