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Obra completa do filósofo Vilém Flusser será publicada no Brasil

Pensador checo que viveu durante 32 anos no Brasil foi colaborador do 'Estadão'

Por Rodrigo Maltez Novaes e Rodrigo Petronio
Atualização:

O leitor está familiarizado com uma parte importante da obra do filósofo judeu-checo-brasileiro Vilém Flusser (1920-1991). Afinal, Flusser viveu 32 anos no Brasil e escreveu em português algumas de suas mais importantes obras. Contudo, poucos sabem que suas obras publicadas são apenas uma parte de um iceberg. O Arquivo Flusser mantém cerca de 40 mil páginas, entre originais de livros, ensaios, cursos, palestras, cartas e transcrições de aulas.

O filósofo Vilém Flusser Foto: Arquivo Vilém Flusser

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Essas páginas foram escritas originalmente nas cinco línguas que Flusser dominava: português, alemão, inglês, francês e checo. Boa parte desse vasto material ainda não foi traduzido ou sequer publicado, em nenhuma língua ou país. Uma parte importante desse manancial diz respeito aos artigos que Flusser escreveu para o Estado, do qual fora colaborador regular durante a década de 1960.

Para sanar essa lacuna e empreender uma publicação o mais exaustiva possível em português desse grande pensador, a editora É Realizações vai lançar, a partir de outubro, a Biblioteca Vilém Flusser. O projeto pretende publicar tudo o que Vilém Flusser produziu em português e algumas traduções das obras que escreveu outras línguas. Pretende contemplar tanto a reedição de alguns clássicos, como A Dúvida e Língua e Realidade, quanto outras preciosidades desse espólio inédito. A iniciativa conta com o apoio de Miguel Flusser, filho e herdeiro legal de Vilém. A Biblioteca é coordenada por Rodrigo Maltez Novaes e Rodrigo Petronio e pretende ser uma referência mundial na organização e na edição crítica das obras de Flusser. 

O primeiro volume da Biblioteca Flusser será O Último Juízo: Gerações, com lançamento previsto para o fim de outubro, segundo o editor Edson Filho, da É Realizações. Trata-se da obra mais extensa que Flusser escreveu: mais de 500 páginas. Concluída em 1966, jamais havia sido publicada na íntegra em nenhum país. Pertence a uma fase de seu pensamento que pode ser definida como existencial e fenomenológica, na qual Flusser amadureceu boa parte dos conceitos centrais de seu pensamento. Lançar luzes sobre essa fase, ainda pouco conhecida, é uma das melhores maneiras de compreender a evolução ulterior de seu pensamento, bem como a gênese de seus conceitos amplamente associados à teoria da mídia, à filosofia da tecnologia, à comunicologia e à antropologia da comunicação.

Em um ensaio autobiográfico de 1969 intitulado Em Busca de Significado, Flusser chega a dizer que Gerações foi inspirado por Foucault. A escrita da obra coincide com o ciclo de conferências de Foucault proferidas na USP (1965), ao qual Flusser provavelmente assistiu. De fato, do ponto de vista filosófico, o conceito de gerações seria uma tentativa de criticar e ampliar o conceito de episteme do pensador francês. A obra de Flusser recupera uma antiga figura do pensamento: a alegoria. Conduz o leitor por quatro estágios de formação do Ocidente a partir de quatro alegorias: Culpa, Maldição, Castigo, Penitência. 

A autonomia moderna do homem em relação ao mundo teria paradoxalmente criado todas as matrizes do pensamento mecanicista moderno. As consequências naturais deste mecanicismo seria a alienação do humano de si, que presenciamos ao longo do século 20. A partir desse cortejo de alegorias, Flusser não apenas realiza uma desconstrução do pensamento moderno. Desenha os horizontes do pensamento do século 21. Esse novo horizonte será marcado pela figura do aparelho, do funcionário, do instrumento e do programa.

Inspirada na pesquisa de doutorado de Novaes e em seu trabalho no Arquivo de Berlim, a Biblioteca Flusser seguirá uma organização cronológica, algo que nunca foi feito. Será dividida também em quatro vertentes: monografias, cursos, ensaios-artigos e correspondência. Petronio será responsável pela fortuna crítica, pelos textos de apresentação e de situação de cada livro, tanto no interior da obra de Flusser quanto no contexto da filosofia do século 20. Esse tipo de organização arquivista é o modelo ideal, pois pode servir de base para novas recombinações e reedições ao redor do mundo. 

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A Biblioteca Flusser se pretende aberta e plural. Deseja contar com a participação de grandes pesquisadores da obra de Flusser e também de artistas, escritores e novos leitores que mantenham um diálogo intenso com o filósofo. Apesar da maior produção do filósofo ter sido em português, a parte alemã de sua obra é a mais conhecida mundialmente e ainda pouco traduzida em português. Por isso, outro objetivo da Biblioteca é trazer ao leitor brasileiro a produção de Flusser em outras línguas e inéditas em língua portuguesa. 

Outro ponto alto do projeto (com mais de 20 volumes) será a edição de sua vasta correspondência com intelectuais de todo mundo, e, em especial, com Milton Vargas, Celso Lafer, David Flusser, Sergio Rouanet, Dora Ferreira da Silva, Vicente Ferreira da Silva e Abraham Moles. Diferente de ser um mero apêndice a seus livros e ensaios, a correspondência revela uma das essências do legado de Flusser. A inspiração radicalmente dialógica, perspectivista, polifônica e pluralista de seu pensamento. 

Vilém Flusser nasceu em Praga, em 1920. É considerado um dos mas importantes pensadores da tecnologia e da comunicação do século 20, com obras traduzidas em diversos países e idiomas. Filho de uma família de intelectuais judeus, desde cedo foi incentivado aos estudos pelo pai, professor de matemática e física. Cursou Filosofia na Universidade de Carolina (República Checa) e depois na London School of Economics and Political Science, mas os problemas decorrentes da guerra o impediram de concluir os cursos. Na década de 1940, a irmã, os pais e os avós foram mortos em um campo de concentração nazista. 

Em 1940, emigrou para o Brasil, país onde viveu por 32 anos e em cuja língua produziu algumas de suas mais importantes obras. Entre as décadas de 1960 e 1970 trabalhou como jornalista, sobretudo no Estado. Foi colaborador da Revista Brasileira de Filosofia, ministrou cursos e palestras no Instituto Brasileiro de Filosofia e atuou como professor de Filosofia da Ciência na Escola Politécnica da USP, a convite de Milton Vargas, e de Teoria da Comunicação na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Flusser morreu em 1991, em um acidente automobilístico em Praga.

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O Arquivo Flusser preserva cerca de 40 mil páginas, escritas originalmente nas cinco línguas que o filósofo dominava. O pensamento de Flusser parte da fenomenologia, das filosofias da existência, de Heidegger e Wittgenstein. A partir dessa base, desenvolve nas décadas seguintes uma abordagem revolucionária das tecnologias e da comunicação. A obra de Flusser consiste em um infinito exercício desconstrutor das acepções dos conceitos, e, por conseguinte, de nossas noções compartilhadas de realidade. Esse método desconstrutor procura sobretudo relativizar a noção de verdade a partir das acepções distintas que um mesmo conceito assume em diferentes línguas. 

*Rodrigo Maltez Novaes trabalhou na reorganização geral do Arquivo Flusser de Berlim (2009-2014) *Rodrigo Petronio é professor titular da Faap e doutor em literatura comparada pela Uerj 

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