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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Paixão corrompida

Não será surpresa se o épico ‘United Passions’, película chapa-branca da Fifa, entrar pelo cano na bilheteria

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Atualização:

Até algum tempo atrás talvez ninguém acreditasse que a Fifa fosse a Petrobrás do futebol, e vice-versa. Agora a comparação não só é válida como inserida no contexto petroleiro. O Catar, um dos pivôs do escândalo que culminou com a renúncia de Sepp Blatter no dia 2, tem a terceira maior reserva de petróleo e gás do planeta. Como na Operação Lava Jato, uma delação premiada pôs a Justiça no encalço dos bandidos.

Irritado com um parceiro de falcatruas que, cinco anos atrás, apoiara a escolha do Catar para sediar a Copa do Mundo de 2022, Chuck Blazer, ex-membro do comitê executivo da Fifa e secretário-geral da Concacaf (Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe), abriu o bico para o FBI. Trêfego figurão do esporte, dublê de cartola e marqueteiro, amálgama fisionômico de Papai Noel com Falstaff e Karl Max, o nova-iorquino Blazer fazia lobby para os Estados Unidos, mas seu parceiro de falcatruas, o caribenho Jack Warner, ex-presidente da Concacaf e ex-vice presidente da Fifa, preferiu não contrariar a vontade do chefão Sepp Blatter.

No cofre: Tim Roth faz o papel de Blatter no filme, que teria custado 24 bilhões de euros Foto: DIVULGAÇÃO

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Para corroborar sua acusação de que Blazer (et pour cause conhecido como “Mr. Ten Per Cent”) se vendera aos americanos e estes teriam conseguido emplacar uma Copa do Mundo alternativa nos EUA, já neste verão, Warner repercutiu pela internet uma manchete da revista eletrônica Onion anunciando o emergencial torneio para daqui a um mês. Warner entende um bocado de propina e lavagem de dinheiro, mas nada de humor. A Onion é um site especializado em notícias falsas. O caribenho virou chacota, foi pego no arrastão do FBI na Suíça, e, a exemplo de Blazer, não viu outra saída senão negociar com a Justiça uma denúncia premiada.

No escândalo da Fifa, essa dupla permanece insuperada no quesito pitoresco. Caberiam numa comédia de erros, mas, até por incompatibilidade de gêneros, nem sequer como figurantes aparecem no filme United Passions, épica biografia da Fifa por ela própria patrocinada, que na última sexta-feira estreou no mercado americano. Seus heróis são, como não podiam deixar de ser em se tratando de um docudrama chapa-branca, os hierarcas do futebol: de Jules Rimet (Gérard Depardieu) a Sepp Blatter (Tim Roth), passando naturalmente por João Havelange (Sam Neill).   Não será surpresa se United Passions entrar pelo cano na bilheteria. Os americanos não se amarram em soccer e os atores do filme não arrastam multidões aos cinemas, muito menos para assistir à celebração de uma entidade diariamente envolvida em casos de nepotismo, suborno, tráfico de influências e lavagem de dinheiro. Além do que presidida por um capo que se autocondenou ao insistir em disputar seu quinto mandato consecutivo com a lama já na altura do pescoço. Quinto mandato consecutivo do que quer que seja num feudo mafioso como a Fifa deveria sempre ser cumprido atrás das grades.   Se os americanos não se amarram em soccer, por que se meteram nesse imbróglio? Uma resposta possível seria horror vacui. A Scotland Yard nada fez, a polícia francesa fingiu que não viu, o FBI ocupou o espaço vazio. Motivado ou não pela perda da Copa de 2022 para o Catar, desta vez agiu mais como no tempo de Eliot Ness e seus intocáveis do que como na tenebrosa gestão de J. Edgar Hoover. Ademais, a maior parte das transações financeiras efetuadas pelos implicados no petrolão da bola foi acertada em território americano e efetivada através de bancos locais. 

Putin e alguns analistas de esquerda reduziram a blitz a “uma ação orquestrada” visando a isolar a Rússia do Ocidente, ilação mais plausível se os EUA tivessem trocado sua preferência pelo Mundial de 2018. Outros disseram que o FBI faria bem maior à humanidade se agisse com a mesma eficácia contra os bancos e demais instituições financeiras de Wall Street. Um deles sugeriu que a Rússia, a Ásia e a América do Sul deveriam unir-se e criar uma Copa autônoma, “fora do alcance do Ocidente corrupto”. E, lamentavelmente, das equipes europeias.

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A direita americana não fez por menos. Um think tank de Washington defendeu a reeleição de Blatter, por considerá-lo “um fiel aliado de Israel” e por temer que um “extremista islâmico” o sucedesse - o que não era o caso do príncipe jordaniano Ali Bib Al Hussein, o candidato da oposição derrotado na semana passada. Bill O’Reilly, o principal Savonarola da Fox News, chegou a exigir que se bombardeasse o QG da Fifa em Zurique.

Mesmo que não venha a ser indiciado, nem mesmo preso, Blatter não dispõe de prestígio bastante para influenciar na escolha de seu sucessor. Nem isso tem tanta importância assim. O que a Fifa precisa não é de um presidente de ficha limpa, mas de uma reforma em regra, que destrua a estrutura corrupta da entidade. Para início de conversa, uma alteração em seu código eleitoral. Nada de “um país, um voto”, igualitarismo fajuto que só serviu para facilitar a compra de apoios e perpetuar Havelange e Blatter no poder. 

Em busca de uma real representatividade do futebol e seus praticantes, vários esportistas apresentaram como alternativa uma espécie de colégio eleitoral, em que todos os jogadores, profissionais e amadores, devidamente registrados em suas confederações, teriam direito a voto. 

Nunca fez sentido Alemanha, Brasil, Inglaterra, Argentina e outras potências do futebol terem o mesmo peso eleitoral na Fifa de Tonga, Comores, Samoa e Taiti. Há 5.257 vezes mais gente jogando futebol na Alemanha do que no Butão, por exemplo. Pelo novo esquema, as 12 maiores potências do futebol teriam 60% dos votos. Como está, com 50% dos votos vindos de 105 países que, juntos, representam apenas 2,2% do plantel mundial, é praticamente impossível qualquer reforma que lhes diminua o poder de escolha e, sobretudo, de barganha. Mas não custa tentar. Sem suborno.

Opinião por Sérgio Augusto
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