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Que Deus nos proteja

Apelo do ministro ao Criador por chuva seria impensável com cidadania forte

Por Sérgio Telles
Atualização:
GUILHERME CALDAS E OLAVO ROCHA/DIVULGAÇÃO 

Uma das coisas que mais me surpreenderam quando vim de Fortaleza para morar em São Paulo foi ver que as pessoas não varriam a calçada das ruas e sim as lavavam, gastando grande quantidade de água. Sendo do Nordeste, onde a seca é uma presença forte no imaginário coletivo e na realidade cotidiana, considerava a água um bem valioso e me chocava vê-la desperdiçada com tanto descaso. 

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Essa lembrança me veio à mente com as notícias sobre a iminente falta d’água em São Paulo, que está atravessando uma seca, ou melhor, uma “crise hídrica”, como dizem os políticos.

O uso de eufemismos para a se referir a realidades incômodas não é apenas uma curiosidade linguística. É um artifício ligado às técnicas de propaganda e publicidade que dominam a prática política mais recente e tem sombrios antecedentes. São conhecidos dois excelentes registros desse recurso: um deles é de ordem ficcional e foi realizado por George Orwell com seu romance 1984, onde cria a “novilíngua” para denunciar o totalitarismo soviético; o outro, documental, Lingua Tertii Imperii - A Língua do Terceiro Reich, escrito por Viktor Klemperer e que entre nós recebeu a cuidadosa tradução de Miriam Bettina Oelsner, no qual estão expostas as deturpações e manipulações da língua alemã pelos nazistas. Diz Klemperer: “A língua conduz meu sentimento, dirige minha mente, de forma tão mais natural quanto mais inconscientemente eu me entregar a ela. O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e aparentam ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar”.

Embora longe da amplitude e abrangência alcançadas naqueles regimes autoritários, estamos todos habituados a diversos termos com os quais o poder nos bombardeia regularmente, como “aloprados”, “recursos não contabilizados”, “elite”, “herança maldita”, “mídia golpista”, “malfeitos”, “contabilidade criativa”, “pedaladas” e tantos outros que mistificam e desinformam, dificultando qualquer transparência daquilo que supostamente deveriam esclarecer. Embora condenável, é compreensível que os marqueteiros do poder usem tal terminologia. Que a “mídia golpista” os avalize ao utilizá-los sem aspas é um curioso paradoxo. 

Vê-se então que a forma como o poder usa a língua é bastante significativa. Um dos pilares da identidade de uma nação, manifestação cultural de magna grandeza, a língua é um bem inalienável que deve ser defendido, respeitado e ensinado. Mais um povo fala corretamente sua língua, melhor ele expressa o pensamento, o conhecimento, a crítica, a sensibilidade, as relações afetivas. 

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Sob esse aspecto, o fato de Dilma Rousseff se fazer chamar de “presidenta” deixa de ser uma idiossincrasia sem importância e adquire conotações antes pouco evidentes. Se em assim fazendo enfatiza o fato de ser mulher e toma posição no combate a valores machistas retrógrados ainda muito presentes em nossa sociedade, por outro lado tal escolha desconsidera importantes aspectos. Dizendo-se “presidenta” - embora seja esta uma palavra dicionarizada -, ao invés de estimular o pleno domínio da língua por todos, ou seja, a conquista do conhecimento via educação, de forma demagógica nivela a linguagem por baixo e com isso contribui para que os desfavorecidos permaneçam no gueto da ignorância, incapacitados de efetivamente competir com os mais bem preparados. 

Mas voltemos à seca de São Paulo, sua “crise hídrica” - eufemismo que nos levou a um longo desvio. São veiculadas notícias preocupantes ligadas à falta d’água, bem como em relação ao sistema elétrico na iminência de um “apagão”. Aparentemente corremos o risco de voltar à década de 1950, vivendo novamente a situação cantada numa marchinha de carnaval daquela época que talvez volte merecidamente a ser um hit no próximo carnaval - “de dia falta água, de noite falta luz”.

Com as afirmações e desmentidos, não sabemos exatamente o que esperar. Estamos mesmo em vias de enfrentar uma grave situação? Até onde vai nossa “crise hídrica”? Como lidar com o “apagão”? Que podemos esperar de nossas autoridades? Estamos à beira de uma catástrofe? Como a população vai reagir a uma séria escassez de água? Estará preparada para exercer alguma solidariedade coletiva em nome do bem comum ou a gravidade da situação despertará o instinto de sobrevivência, impondo o salve-se quem puder? 

Em situações emergenciais como essa é fundamental a confiança da população em seus líderes. Mas vivemos um momento em que a confiabilidade dos políticos cai ininterruptamente, o que o estelionato eleitoral praticado por nossa “presidenta” só fez agravar. Estamos cada vez mais atentos ao sinuoso discurso de muitos políticos, no qual fica evidente que o interesse que os move não é a busca da verdade no zelo pela coisa pública e sim garantir que sua permanência no poder seja a mais longa possível, não importa a que preço. 

Grande parte das catástrofes naturais é imprevisível. As mais comuns no Brasil - habitualmente a seca no Nordeste e as enchentes no Sudeste - são perfeitamente previsíveis, ocorrem regularmente e ao acontecerem evidenciam mais uma vez a falta de planejamento e a incúria dos poderes públicos. 

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Nessa quinta, o ministro Eduardo Braga deu uma explícita demonstração de tudo isso. Ao ser indagado dos riscos de um “apagão”, respondeu que “Deus é brasileiro e temos que contar que ele vai trazer um pouco de umidade e chuva”. É verdade que nas calamidades sentimo-nos desamparados, impotentes e diminutos diante das forças que nos abatem. Regredimos e queremos a proteção paterna. Voltamo-nos incongruentemente para Deus Pai, implorando sua misericórdia justamente no momento em que ele, indiferente à nossa infelicidade, nos impõe grandes agruras e nos abandona à própria sorte. Frente ao silêncio de Deus, arranjamos desculpas para manter inabalada nossa fé. Se Deus não escuta nem atende nossas preces isso não nos autoriza a duvidar de sua existência ou de sua bondade. A culpa é nossa. Por sermos maus e pecadores, a única coisa que merecemos é o castigo. 

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A resposta do ministro, autoridade que deveria informar as providências tomadas pelo governo para enfrentar tamanho problema que pode atingir grandes populações, deixa implícitas a ausência de uma estratégia e a falta de planejamento ao confessar que dependemos da ajuda divina... 

A resposta do ministro seria impensável se tivéssemos uma cidadania forte e atuante que não se deixasse engodar com apelos religiosos - o que não ocorre com nosso bovino eleitorado - e exigisse providências concretas por parte dos representantes que elegeu e sustenta com os impostos que paga. 

Nessa semana circulava nas redes sociais uma enquete que perguntava o que é o pior no momento - falta de luz ou de água. Apesar de reconhecer que ambas provocam imensos transtornos, penso que a pergunta está mal formulada. O pior no momento é a falta de políticos respeitáveis e a pusilanimidade dos cidadãos. Assim, no Brasil, ante os perigos de “crise hídrica” ou “apagão”, só nos resta pedir a Deus que nos proteja. 

SÉRGIO TELLES É PSICANALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE O AVESSO DO COTIDIANO (ZAGODONI)

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