“Pederastas” e “homossexuais” têm experimentado uma longa história de discriminação. Até hoje, sua presença e práticas sexuais despertam forte preconceito e violência. No campo jurídico, desde a década de 1980 há avanços importantes. Da descriminalização da sodomia (definida como prática sexual privada consensual entre adultos do mesmo sexo) até o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, a tarefa é consolidar a democracia e fortalecer a igualdade. No Brasil, apesar de práticas sexuais homossexuais deixarem de ser crime já no Código Criminal do Império (1830), permanece intocado o artigo 235 do Código Penal Militar (1969). Batizada pela lei de “pederastia ou outro ato de libidinagem”, ali está descrita uma conduta criminosa: “Praticar ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”.
Em sua última manifestação a respeito, a Procuradoria-Geral da República (PGR) admitiu a “redação infeliz” da norma, a “despicienda remissão à prática homossexual”, ser “absolutamente dispensável” a menção à pederastia e ao ato homossexual; ao mesmo tempo, reafirmou que “não há rigorosamente nenhum prejuízo à intelecção da norma, que visa a punir quaisquer atos libidinosos em local sujeito à administração militar, de maneira absolutamente independente da orientação sexual de seus protagonistas”.
Com a devida licença, não há como sustentar essa posição. A elaboração, aprovação e manutenção de tal norma no direito brasileiro causam dano grave, real, direto e imediato a “pederastas” e “homossexuais”.
Em primeiro lugar porque a redação do tipo penal teve a confessada intenção de perseguir especialmente homossexuais, sem nenhuma reserva ou escrúpulo. De fato, diz a exposição de motivos do Código Penal Militar, ao justificar o artigo 235: “É a maneira de tornar mais severa a repressão contra o mal”. Há muito mais que uma redação infeliz ou dispensável remissão a atos homossexuais (subsumidos na categoria pederastia): está presente a intenção e a ação legislativas direta e objetivamente direcionadas contra cidadãos em virtude de sua orientação sexual.
E se o nome do crime fosse “fornicação heterossexual ou outro ato de libidinagem”, com motivação explícita a reprimir “O MAL”? Haveria dúvida quanto a preconceito, desvalor e reprovação contra a fornicação heterossexual? E quanto ao efeito, de reforço e disseminação da discriminação contra heterossexuais fornicadores?
Em segundo lugar porque destacar o ato homossexual dentro de um inumerável conjunto de possíveis atos libidinosos é expressar repúdio e censura particularmente graves e intensas contra homossexuais. Não estamos diante de uma exemplificação inocente. O que se faz é desrespeitar homossexuais indevidamente, de modo direto e imediato, pela reprodução e incentivo do senso comum preconceituoso e intolerante.
Basta enunciar: “Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, heterossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”. Alguns poderiam experimentar estranheza ou considerar tal redação bizarra; muitos outros nela perceberiam a proeminência daquilo que ela expressamente marca: a notável e indubitável reprovação mais gravosa do ato libidinoso heterossexual dentre os demais.
A história constitucional e a construção da democracia não deixam dúvidas: quando a legislação é elaborada, aprovada e aplicada, grupos discriminados estão sujeitos a subjugação e desvantagem estruturais e constantes. Tanto assim que a aplicação do artigo 235 pelos tribunais militares, quando examina atos homossexuais, expressa aversão e repulsa em grande intensidade.
Eis o verdadeiro e mais urgente mal a ser expurgado no direito brasileiro contemporâneo, quando examinamos a Constituição democrática e o Código Penal Militar de 1969: o desrespeito, o preconceito e a discriminação contra indivíduos e grupos, decorrente da homofobia e intolerante com a diversidade sexual.
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Roger Raupp Rios, juiz federal, é doutor em Direito (UFRGS) e professor do Mestrado em Direitos Humanos da Uniritter (Porto Alegre)