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Resistência

"Na hora do embate, na linha de frente ficariam os escudos de plástico; ao fundo, os estilingues; no meio, coquetéis molotov e bombas"

Por Paula Sacchetta
Atualização:

Era domingo, perto das 6h da manhã, quando a Polícia Militar chegou. Cerca de uma hora depois, os moradores que não haviam reagido até então começaram a resistir. Em janeiro de 2012, a PM paulista realizou uma violenta ação de reintegração de posse na comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Desde 2004, aproximadamente 6 mil pessoas viviam no local antes abandonado, parte da massa falida da empresa Selecta S/A, do empresário Naji Nahas. De um lado, policiais militares, guardas-civis, dois helicópteros, blindados, bombas de gás, balas de borracha, spray de pimenta, viaturas, cães e cavalos. De outro, um exército mambembe de moradores armados com pedaços de pau e protegidos por escudos de plástico. A imagem da resistência estampava a capa dos grandes jornais no dia seguinte. Quase dois anos depois, os fotógrafos Gabo Morales e Filipe Redondo, que integram o coletivo Trëma ao lado de Rodrigo Capote e Leonardo Soares, voltaram ao local para registrar aqueles moradores em momentos distintos: “à paisana” e “fardados”. O trabalho, Tropa de Elite, acaba de vencer o Prêmio Conrado Wessel de Arte, um dos mais importantes da fotografia no Brasil. Morales e Redondo falaram ao Aliás.

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Por que vocês foram atrás, tanto tempo depois, desses ‘soldados’ que já haviam estado em todas as capas de jornais?

Morales - Era um assunto que continuava rodando. Saiu em todos os lugares mesmo, mas a foto deles juntos, como massa, não como indivíduos. Nada se falou daquelas pessoas, de cada uma, só do exército. Queríamos saber quais eram suas histórias, quem eram os homens e mulheres debaixo daquelas armaduras.

E quem eram eles?

Morales - Para encontrá-los, participamos de duas assembleias de ex-moradores, que acontecem a cada 15 dias. O líder de lá nos apresentou aos moradores e pediu que quem quisesse e tivesse sido soldado que viesse falar conosco. Eram pessoas das mais diversas possíveis, engajadas de formas diferentes naquela luta, mais ou menos participativas. A expulsão foi um processo muito dolorido para eles. Quando nos encontramos com cada um, eles se dividiam entre o ceticismo e a esperança. Ainda esperavam que o governo federal anunciasse a construção de casas, o que foi feito depois, mas estavam abalados com o que havia se passado antes. Eles não têm um mesmo perfil, são homens e mulheres que agora tentam tocar a vida de outras formas, em outros lugares. 

Por que retratá-los?

Redondo - Eles representam um contexto maior do País. O retrato de cada um deles resume essa necessidade primitiva de proteger o lar. E isso não está só na foto. Foi um esforço de oito anos. Eles resistiram por oito anos ali e nunca estiveram tranquilos ou acomodados. Era um exército frágil, incapaz até, mas que existia para resistir. Algumas pessoas dizem que eles “ocupavam” a terra abandonada. Outras, que “invadiram” propriedade alheia. Mas o mundo real é mais complexo do que isso. Nós queríamos mostrar exatamente essa complexidade, repleta de vidas.

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Como se organizava esse exército?

Morales - Parece que a ideia de montar esse exército veio de fora. Eles começaram a treinar muito tempo antes e tinham até hierarquia e estratégia. Na hora do embate, se houvesse, na linha de frente ficariam os escudos de plástico; ao fundo, os estilingues; no meio, coquetéis molotov e bombas. Eles sabiam que se houvesse uma ação de despejo deveriam reagir. Extrapolou o plano da segurança comunitária e virou um exército mal munido, quase um delírio, mas foi a forma que eles encontraram para resistir. Acreditamos que a PM fez o que fez ali por uma ideia hobbesiana do monopólio da violência: “Como assim eles têm um exército? Vamos aniquilar. O Estado é que tem o monopólio da violência, o Estado tem a polícia e o Exército”. Era um fator simbólico, mas que se refletiu muito na realidade. E eles nem chegaram a usar tudo porque não tiveram tempo, foram pegos de surpresa.

E o prêmio?

Redondo - Nós acreditamos que vencer o Conrado Wessel foi uma mensagem da organização do prêmio para mostrar a importância de um trabalho simples e direto, mas que tenta compreender um pouco deste momento político tão complicado pelo qual estamos passando. É um momento de efervescência, de embates entre direita, esquerda, movimentos sociais, reacionários, etc. O Pinheirinho fez, faz e fará parte disso, porque não está superado.

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