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Ressaca nacional

O que se viu foi uma espécie de estouro da bolha. De tanto ouvir falar acabamos acreditando que no futebol e na vida tudo dá certo, mesmo sem se ter a estrutura necessária

Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:
EDU_4344.JPG BELO HORIZONTE/MG 08/07/2014 ESPORTES - COPA DO MUNDO FUTEBOL FIFA/SEMIFINAIS/BRASIL X ALEMANHA/WORLD CUP FOOTBALL SOCCER FIFA MATCH BRAZIL x GERMANY Menino triste perplexo apos chorar a derrota da selecao brasileira no jogo Brasil e Alemanha no estadio do Mineirao pelas semifinais do Campeonato Mundial de Futebol FOTO EDUARDO NICOLAU/ESTADAO Foto: EDUARDO NICOLAU/ESTADÃO

Na quarta-feira o Brasil acordou de ressaca, numa zoeira brava que promete durar. Eu mesma estive no Mineirão para acompanhar aquela sequência alucinada de gols que deixou o público presente mais do que choroso: atônito. A reação foi de silêncio e incredulidade diante dos gols que se sucediam como se tivessem mudado as regras do jogo e esquecido de nos avisar.

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Quem sabe a sensação tenha a ver com a velha fórmula de Nelson Rodrigues, brilhantemente exposta no livro A Pátria em Chuteiras, mas acompanhada de novas feições produzidas pelos mais de 40 anos que nos separam das interpretações certeiras de nosso dramaturgo maior. Publicados entre 1950 e 1970, os textos que compunham o livro revelavam em seu conjunto um claro otimismo em relação ao Brasil e aos brasileiros, que seria logo reafirmado com as conquistas da Copa da Suécia em 1958 e a do Chile em 1962. Atrás das reflexões esportivas e dos arroubos interpretativos de Nelson pairava uma visão que entendia o futebol como exemplo do sofrimento do povo brasileiro: castigado, mas sempre um vencedor na sua saga diária.

Acabar com o “complexo de vira-lata” instalado depois das Copas de 1950 e 1954 parecia ser quase ideia fixa. “Amigos”, escrevia ele, “há um momento na vida dos povos em que o país precisa ser anunciado, promovido, profetizado.”

Depois de Nelson Rodrigues não foram poucos os autores que bateram na hoje castigada tecla de que o futebol é metáfora forte do País. Também não foram poucos os teóricos que chamaram a atenção para o fato de que nações de passado recente e colonial, a exemplo da nossa, têm a mania de usar a identidade como um tipo de colchão inflável e achar por bem (e sentir profundamente) que ela está sempre em questão: no nosso caso, em chuteiras. 

Sabemos, porém, que identidades não são fenômenos congelados e muito menos atemporais. Ao contrário, elas representam respostas dinâmicas, políticas e flexíveis, uma vez que reagem e negociam diante de situações específicas.

Talvez por isso valha a pena perguntar de qual futebol estamos falando, e que ressaca estamos sentindo. Quem sabe aquele futebol do jeitinho, da plasticidade, da poética aclamada por Pasolini, das habilidades mágicas, espontâneas e do último minuto seja não só o espelho da prática esportiva que acalentamos como da identidade que forjamos para nós mesmos ao longo desses anos todos, segundo a qual somos o país do improviso que dá certo. 

Talvez por isso, também, Deus era brasileiro até termos que encarar, dormir e acordar com um escandaloso 7 a 1. Afinal, o que vimos no dia 8 de julho foi em tudo contrário à ladainha que gostamos de contar para nós mesmos e para os outros. Em campo, um time duro, sem repertório ou invenção e nada parecido com aquele futebol-prazer que enchia os olhos. Nem mesmo o velho e bom “familismo”, tão bem definido por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil como uma prática brasileira de burlar instâncias públicas para usar e abusar das privadas, funcionou. Amizade, relações paternais, tão usadas pelo técnico Felipão, pareciam não fazer mais sentido. Em fila, alinhados, nossos jogadores surgiam infantilizados e temerosos. 

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Do outro lado, estava um time que com o tempo aprendeu a jogar um futebol mais criativo, mas combinou invenção com planejamento, treino, estudo de si e do outro. Enfim, um time profissional no sentido primeiro da palavra.

Não sou especialista em futebol. Mas arrisco dizer que o que se viu em campo, e nessa ressaca atual de sentimentos, foi uma espécie de estouro da bolha. De tanto ouvir falar acabamos acreditando que no futebol e na vida, mesmo sem ter a estrutura necessária, tudo dá certo. Como se uma maquiagem esportiva e social tivesse o poder de gerar realidade. 

Temos construído uma imagem tantas vezes sonhada de um país diferente, por conta da imaginação, da alegria e de um jeito particular de enfrentar dificuldades. Ora tudo isso pode ser muito bom, mas o Brasil é também campeão em desigualdade social, luta com dificuldade para ganhar valores republicanos e cidadãos, apresenta problemas graves na sua infraestrutura - educacional, nos transportes, na saúde, na Justiça - que precisam ser ainda enfrentados com imaginação, sim, mas também com planejamento e muito investimento.

O 7 a 1, ao invés de resultado final, pode virar um bom recomeço. A abertura para uma lente de aumento, bem focada na danada da realidade. 

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Em 1958, nas páginas do jornal O Sport, Nelson Rodrigues desabafou: “Foi preciso que jornais alemães, franceses, húngaros, checos, ingleses berrassem para nós: - Vocês são os maiores”. De fato, demos ao mundo naquela ocasião um novo jeito de jogar o futebol, mas quem sabe hoje fomos nós que perdemos nossa ginga em campo. 

Termino abusando outra vez de Nelson Rodrigues: “Já descobrimos o Brasil mas não todo o Brasil (...). Não há de ser num vago e distraído olhar que vamos dar um jeito em todo o Brasil”. A era dos milagres parece ter acabado. A grande seleção nacional está sendo convocada a trabalhar, sem seus santos de plantão.

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Lilia Moritz Schwarcz é antropóloga, professora da USP e autora, entre outros livros, de 'O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870 - 1930' (Companhia das Letras)

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