Sem deuses

É preciso que o Islã não fundamentalista aceite a legitimidade daquilo que ‘Charlie Hebdo’ pratica com intransigência: o direito de ironizar gregos e troianos

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Por Paolo Flores d’Arcais
Atualização:
Homenagem de Joep Bertrans ao Charlie Hebdo 

Heróis das liberdades democráticas - definiu-os intempestivamente o presidente François Hollande. É verdade. Wolisnki e seus companheiros do Charlie Hebdo eram de fato libertinos maníacos sexuais, extremistas de esquerda, ateus, anarquistas-comunistas; enfim, irresponsáveis, como diz cristalina e orgulhosamente o subtítulo do semanário hoje transformado em elogio por governantes reacionários e jornalistas do establishment, déspotas e falsas esquerdas, papas e Ligas Árabes, com diferentes graus de hipocrisia que nem sequer procuramos medir. Melhor assim. Agora todos devem alinhar-se na defesa do direito aos “despautérios” com os quais os “extremistas” irresponsáveis que acabam de ser assassinados caracterizaram suas vidas, encheram as páginas do Charlie e nutriram nossas liberdades. Quando ainda empunhavam o lápis eram atacados, difamados, apenas suportados. O elogio que, contra a própria vontade, todos devem fazer hoje é, pois, a charge e o editorial que Wolinski e Charb poderiam ter escrito sobre a hipocrisia do poder. Não esqueçamos disso.

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A matança foi feita em nome de Deus, o deus monoteísta, criador e onipotente, o Deus de Maomé, Alá, o Clemente e Misericordioso (são os 2 primeiros dos seus 99 qualificativos). Em nome do Islã, portanto - mas do Islã fundamentalista e terrorista, ressalvou-se. O outro Islã, enfatizou-se, é vítima. Sem dúvida. Desde que esse outro Islã fale de maneira forte, clara, sem malabarismos semânticos e com cristalina coerência de comportamento. Por isso, não basta que condene como monstruosa a matança de rue Nicolas Appert, 10 (só faltava não condenar!), mas é inevitável que reconheça a legitimidade e a normalidade democrática do que Charlie praticava de maneira exemplar com intransigência: o direito de criticar gregos e troianos, Nossa Senhora, o Profeta e o próprio Deus em suas variadas confissões concorrentes. Inclusive, e, diríamos mesmo, principalmente, quando essa crítica é vista pelo crente como uma ofensa à própria fé. Isso exige liberdade democrática, porque esse direito desaparece quando o crente se torna árbitro e dono dos seus limites.

O cristianismo, felizmente, foi obrigado a chegar a um acordo com a democracia laica, embora ainda não a aceite plenamente. Assim, o fundamentalismo habita em seu seio em grau infinitamente menor que em relação ao fundamentalismo islâmico - isso é ponto pacífico e não há comparação possível. Mas não devemos nos esquecer que foram cristãos militantes que, nos EUA, assassinaram médicos e enfermeiras que respeitavam a vontade de abortar de algumas mulheres. Mulheres, médicos e enfermeiras que Wojtila e Ratzinger chamaram várias vezes de responsáveis pelo “genocídio do nosso tempo”, ou seja, nazistas pós-modernos.

O laicismo mais rigoroso, que exclui Deus, qualquer Deus da vida pública (escolas, tribunais, comícios eleitorais, debates televisivos, etc.), é, portanto a única salvaguarda contra a incubação de um caldo de cultura clerical que inevitavelmente poderá tornar-se uma bala fundamentalista. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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PAOLO FLORES D’ARCAIS, FILÓSOFO E JORNALISTA ITALIANO, É EDITOR DA REVISTA MICROMEGA E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ETICA SENZA FEDE (EINAUDI)

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