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Sem tripudiar, por favor

Reivindicações da democracia americana colidem com as do capitalismo. O primeiro-ministro da China sorri...

Por Timothy Garton Ash
Atualização:

Depois do derretimento da segunda-feira, que se seguiu ao de 15 de setembro, a montanha do capitalismo americano começou a mudar de forma diante de nossos olhos. Ninguém sabe quando as erupções vão acabar. "O capitalismo democrático é o melhor sistema jamais inventado", disse o presidente George Bush na semana passada, na tentativa de conseguir o apoio do Congresso para um megapacote de US$ 700 bilhões, cujo propósito é o de "salvar a economia como um todo". Na segunda-feira, porém, no momento em que a Câmara dos Representantes rejeitava o pacote (que acabou aprovado na sexta), causando perdas de valor de mercado no índice Dow Jones da ordem de US$ 1,2 trilhão em um único dia, a democracia batia de frente com o capitalismo. Para ser exato: as demandas urgentes da versão americana contemporânea da democracia colidiam com as reivindicações da versão americana contemporânea do capitalismo. É importante ressaltar que foram os parlamentares republicanos que desafiaram a convocação do presidente. Para alguns deles, a opção foi ideológica. Preferiam morrer a votar a favor da ampliação da presença do governo na economia, o que consideram sinônimo de socialismo. Ou melhor, de bolchevismo. Basta ouvir o que disse Thaddeus McCotter, de Michigan, presidente do Comitê de Política de Parlamentares Republicanos e co-patrocinador de uma resolução apresentada no início do ano que conclamava o presidente a fazer de 2008 o Ano Nacional da Bíblia. A escolha é simples e foi proposta por Dostoievski. Em Os Irmãos Karamazov, o grande inquisidor se aproxima de Jesus e lhe diz: "Se quiser subjugar as pessoas, dê a elas milagres, mistérios e autoridade; acima de tudo, porém, dê-lhes pão". Sempre surge a tentação, sobretudo em momentos de crise, de sacrificar a liberdade em troca de promessas de prosperidade a curto prazo. Não por acaso, o slogan da Revolução Bolchevista de 1917 era "paz, terra e pão". Hoje, pedem-nos que escolhamos entre o pão e a liberdade. Imagino que as pessoas comuns tenham optado pela liberdade, e eu concordo com elas. O Jesus das ruas se rebelou contra o plano dostoievskiano de salvação bolchevista. Quem foi que disse que a realidade americana supera sua ficção? Não ajuda em nada tudo isso acontecer em meio a uma eleição presidencial. Ambos os lados fingiam não fazer política partidária quando, na verdade, era exatamente o que faziam. Especialmente os parlamentares que votaram contra - democratas e republicanos - receavam perder sua cadeira. Todos são candidatos à reeleição em 4 de novembro, quando também será eleito o próximo presidente. Muitos deles tiveram de enfrentar um maremoto de e-mails e de telefonemas nos quais o público expressava sua ira contra a decisão de poupar os responsáveis de Wall Street e de Washington. Portanto, esses políticos achavam que tinham de mostrar a seus eleitores furiosos que eles também estavam indignados com Wall Street e com os amigos da turma de Wall Street em Washington. É tudo truque, você diria. É política de gente baixa, não de estadistas de princípios elevados, diria você com um suspiro de desalento. Talvez seja isso mesmo. Contudo, não me diga que isso não é democracia - um sistema em que as pessoas escolhem seus representantes. Por que tantos americanos reagem dessa forma? A maior parte dos europeus reagiria do seguinte modo: "Estado, venha em nosso socorro!" Mas não nos EUA, onde os gêiseres do populismo contrário a Washington e Wall Street brotam de fontes históricas profundas. Estes são os Estados Unidos de primórdios do século 21, onde os ricos se tornaram mais ricos e os pobres, mais pobres, enquanto a classe média - em cuja defesa se levanta Barack Obama - luta para sobreviver. Entre os ricos que enriqueceram ainda mais está o arquiteto do plano original de salvação, o secretário do Tesouro Henry Hank Paulson, ex-diretor-executivo da Goldman Sachs. Segundo informações, ele teria recebido US$ 500 milhões da empresa quando a deixou, em 2006. A pergunta em torno do capitalismo democrático persiste. Há 25 anos, praticamente no alvorecer daquela que viria a ser conhecida como a Revolução de Reagan, um teórico social católico, o americano Michael Novak, publicou um livro de grande repercussão intitulado . O autor dizia, numa das citações remissivas sobre o capitalismo, que ele era compatível apenas com a democracia. "Embora formas bastardas de capitalismo pareçam, de fato, capazes de subsistir sem a democracia", dizia Novak, "a lógica natural do capitalismo conduz a ela." O verdadeiro capitalismo exige virtudes morais como "temperança e prudência, coragem e justiça". Em 2008, o capitalismo não democrático da China lembra muito uma versão bastarda. Não obstante isso, os líderes chineses dizem que ele traz consigo algumas daquelas virtudes específicas que Novak atribui ao capitalismo democrático - e, tudo indica, estiveram ausentes de forma marcante nos últimos anos no capitalismo americano. Temperança! Prudência! Justiça! Em uma entrevista notável concedida recentemente a Fareed Zakaria, que pode ser vista em cnn.com, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, diz que a China combina uma economia de mercado com uma orientação macroeconômica do governo. O mais surpreendente é que ele ilustra seu argumento citando as duas obras principais de Adam Smith. Em A Riqueza das Nações, disse Wen, Smith chama a atenção para a necessidade da mão invisível do mercado, enquanto na sua Teoria dos Sentimentos Morais, ele mostra a necessidade da mão visível do governo em prol dos interesses da igualdade social e do desenvolvimento harmonioso. (Sem dúvida um futuro brilhante aguarda Gordon Brown, discípulo de Adam Smith, quando deixar suas funções de primeiro-ministro britânico: assessorar o Partido Comunista chinês.) Evidentemente, a China tem muita corrupção e desigualdade, e a afirmação de que seu modelo de capitalismo sem democracia - tenho em mente o capitalismo verdadeiro, e não o rótulo - constitui uma alternativa melhor, mais durável e mais moral pode acabar se revelando uma grande bobagem. Embora o primeiro-ministro Wen defenda sua posição de forma bem mais articulada que o presidente Bush, creio que Bush, mesmo assim, está mais próximo da verdade. Parafraseando Winston Churchill, o capitalismo é o pior sistema possível, com exceção de todos os outros que já foram testados em uma ocasião ou outra. Entretanto, o capitalismo democrático está na berlinda neste momento. Ele tem diante de si problemas domésticos e uma concorrência fabulosa. Felizmente, há muitas variantes de capitalismo democrático, e não só aquela que está em erupção por aqui. Para alguns europeus, é difícil resistir à tentação de dizer: "Ah, se vocês americanos tivessem abraçado nossa versão simpática, humana e justa de capitalismo social-democrático!" O fato é que quando a nuvem de poeira baixar e a lava tiver parado de escorrer, o papel do Estado na economia americana terá, possivelmente, ganho contornos parecidos com os de alguns países europeus. No entanto, diante de quaisquer reivindicações fáceis de superioridade por parte da Europa, é importante não nos esquecermos de que a maior parte das economias européias se esforça ao máximo para criar empregos, inovações e espírito de empreendedorismo (a palavra é francesa, mas quem a põe em prática são os americanos), e com empenho semelhante ao da economia americana nos últimos 25 anos. Seja como for, não há um modelo europeu apenas, há vários - além de outras variantes que estão por aí. Isso é sinal de força: é a força do pluralismo. O desafio hoje para a democracia americana consiste, simplesmente, em provar que é capaz de reformar seu modelo de capitalismo democrático por inteiro, tornando-o melhor. *Timothy Garton Ash é professor de estudos europeus da Universidade de Oxford, sênior fellow da Hoover Institution, da Universidade de Stanford, e autor de Free World (Penguin UK), seu último livro

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