Serenidade no caos

Com atividades simples, baseadas na pedagogia Waldorf, eles recuperam a confiança e a alegria de crianças em lugares onde o sofrimento parece infinito

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Por Katia Geiling
Atualização:
Dança de roda nas ruínas de Gaza Foto: Divulgação

Imagine que você é um garotinho nepalês de 6 anos. Há duas semanas a terra tremeu tão forte e por tanto tempo que sua casa virou um amontoado de pó e de pedra. Você congelou de pavor enquanto tudo caía, mas seu pai te pegou no colo e correu pra rua. Sua mãe dormia e ficou presa naquele monte de pó e de pedra.

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Desde o dia em que a terra parecia querer engolir o mundo, você dorme num lugar cheio de barracas que os adultos chamam de abrigo. Dormir é maneira de falar. Você sonha sonhos ruins e acorda a noite toda. O barulho da terra urrando não sai dos seus ouvidos. Durante o dia uns moços trazem comida, mas você não tem fome. Sua barriga dói. Seu peito também. Principalmente quando pensa na sua mãe ainda debaixo da montanha de pó e de pedra. Será que aquilo pesa muito? Você tem pouco o que fazer enquanto a noite e os sonhos ruins não chegam. Resta ficar encolhido torcendo pra terra não sacudir de novo.

Agora faça de conta que uns moços e umas moças diferentes um dia chegaram ao abrigo. Eles não trouxeram comida, mas cordas, lã colorida, papel, giz de cera – wow!, há quanto tempo você não via giz de cera! –, pincéis, bolinhas de pano. Você fica curioso. E então aquelas pessoas se apresentam e chamam todo mundo no abrigo pra fazer uma roda bem grande. A roda se forma e vocês começam a tentar imitar o canto e os movimentos dos adultos recém-chegados. Todo mundo erra quase tudo e você cai na risada. Uma risada tão alta, tão forte que aquela dor presa no peito parece até que escapuliu um pouquinho pela boca. Depois da grande roda você e seus colegas são divididos em turmas menores. Uns vão desenhar, outros ouvir história, uma turma começa a brincar com massinha, um tanto continua tentando cantar e imitar o sujeito divertido da roda.

O alemão Ruf conduz a pedagogia de emergência no curdistão/Iraque Foto: Divulgação

As horas passam e você nem percebe. Os moços e moças fazem outra roda, contam que voltarão no dia seguinte. Que bom, um motivo pra querer que amanheça! Você estava com tanta saudade de brincar, desenhar e dançar que brincou, desenhou e dançou tanto que seu corpo está cansado, porém mais leve. A noite chega, aquele aperto no peito ainda está lá, dói, mas os sonhos ruins não conseguem te alcançar acordado. Você dorme pesado e sonha um sonho bom com sua mãe.

Cerca de 1,7 milhão de crianças viviam nas áreas mais atingidas pelo terremoto que devastou o Nepal em abril do ano passado. O tremor de 7,8 graus matou quase 9.000 pessoas e levou ao chão mais que casas e monumentos. Tudo o que aqueles pequenos nepaleses entendiam por estabilidade virou ruína.

As feridas emocionais que se abrem numa situação tão extrema podem provocar distúrbios psíquicos sérios ao longo do tempo, como comportamentos compulsivos e de autoagressão. Quanto antes houver uma intervenção especializada, maiores as chances de o trauma ser dissolvido e elaborado sem deixar marcas tão profundas e difíceis de tratar. E essa intervenção pode ser algo aparentemente muito simples, mas altamente eficaz: trazer alergia de volta à rotina da criança por meio de brincadeiras, permitir que ela expresse seus sentimentos por meio da arte e ajudá-la a reconquistar a confiança no outro e em si mesma com o apoio de terapeutas que conduzam seu trabalho de forma serena.

O pedagogo alemão Bernd Ruf, especializado em crianças com necessidades especiais, começou a estabelecer essas relações em 2006, logo após o início do conflito entre Israel e o grupo libanês Hezbollah. A guerra duraria “apenas” 34 dias, mas mataria cerca de 1.200 libaneses e 150 israelenses. Ruf teve de embarcar para Beirute no auge da crise para acompanhar a repatriação de 21 jovens libaneses que estavam na Alemanha para um encontro da UNESCO.

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Era a primeira vez que tinha contato direto com os efeitos da guerra. Ficou estarrecido ao encontrar crianças tão assustadas, apáticas, com o olhar vazio. Passou então a pensar em formas de utilizar seu conhecimento para tentar melhorar aquela situação. “Todo professor especial ou formado em pedagogia curativa sabe que nos estágios iniciais de um trauma é relativamente fácil e efetivo ajudar uma criança a transformar suas vivências”, relata o pedagogo no livro Destroços e Traumas (Editora Antroposófica). Nascia assim o primeiro impulso do que acabou ganhando o nome de pedagogia de emergência, método fundamentado nos alicerces da pedagogia Waldorf, que faz belo uso do valor terapêutico do brincar e das artes.

Pequeno queniano brinca com um "chinelo-caminhão" Foto: Divulgação

Em dez anos de trabalho, 344 voluntários especializados na técnica criada por Ruf já fizeram em torno de 50 intervenções de pedagogia de emergência em 16 países, algumas vezes em parceria com a UNICEF. São médicos, terapeutas, pedagogos e educadores, a maioria alemães. Estiveram em Gaza, no Japão pós-tsunami, no Haiti, no Nepal, no norte do Iraque, na China, no Quênia, mais recentemente na ilha grega de Lesbos, onde desembarcam muitos dos imigrantes expulsos pela guerra na Síria.

Quem coordena as ações e vai atrás de doações para viabilizá-las é a organização Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner, sediada na Alemanha. Ruf calcula que entre 50 mil e 80 mil crianças já tenham sido atendidas. Também faz parte de uma missão como essa oferecer treinamento a educadores locais para que eles possam continuar o trabalho quando a equipe de pedagogia de emergência, formada geralmente por dez pessoas, vai embora, duas semanas após a chegada.

Há uma década atuando em regiões onde o inimaginável acabou de acontecer (ou onde tem acontecido há tempo demais) e o sofrimento parece infinito, Ruf já ouviu relatos inacreditáveis de gente que perdeu tudo o que importava na vida. O que o move são as cenas tocantes do resgate, algumas vezes sutil, daquela centelha de vivacidade que habita toda criança. Foi o que aconteceu em agosto de 2014, durante uma intervenção no norte do Iraque com refugiados da minoria yazidi.

Reinaldo, que quer trazer a experiência para cuidar das vítimas da 'guerra' brasileira, atua no Nepal Foto: Divulgação

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Khalida*, uma garotinha de 7 anos que viu seu pai ser decapitado pelo Estado Islâmico, estava em choque havia dias. Passava a maior parte do tempo encolhida numa sala escura. Quando Ruf tentou chamá-la, ela entrou em pânico e começou a gritar. “Pedi então para a mãe dela esperar um pouco e sugerir que apenas assistisse, de longe, nossa atividade. Estávamos fazendo feltragem com lã.” Muito desconfiada, a menina deixou a sala e ficou observando tudo à distância, agachadinha. Um dos voluntários deu a ela um pedaço de lã. Khalida começou a fazer uma pequena esfera e a ansiedade foi diminuindo. “Depois de um tempo, uma das professoras que estava ali a chamou para a nossa roda. Pouco a pouco, Khalida foi se erguendo. E então ela entrou no meio do círculo e começou a cantar para as outras crianças. Ainda estava muito tímida e insegura, mas o primeiro passo havia sido dado.”

Maria Helena Franco, professora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto da PUC-SP e membro da Comissão de Emergências e Desastres do Conselho Federal de Psicologia, admira as ações do grupo comandado por Bernd Ruf. “Tem muito arrivista que aparece nos grandes desastres, que são sempre uma belíssima vitrine. Mas o trabalho da pedagogia de emergência é bem fundamentado. Só não deve ser encarado como recurso único. É mesmo importante uma aproximação com as pessoas do local para que haja uma continuidade depois”, ressalta a especialista. “E o brincar pode, sim, ajudar a criança no processo de superação do trauma. Ele possibilita uma reconstrução. Posso fazer o mundo de outro jeito quando eu brinco”, completa Maria Helena.

Guerra brasileira. Noite quente de sexta-feira. Cerca de 40 pessoas, entre elas professores, pedagogos, estudantes e profissionais de ONGs que lidam com crianças e jovens em situações de risco, lotam uma das salas da Sociedade Antroposófica no Brasil, no Alto da Boa Vista, bairro agradável da zona sul de São Paulo. Elas estão ali para participar de um workshop com Reinaldo Nascimento, terapeuta social de 37 anos formado na Alemanha e único voluntário brasileiro a participar regularmente das ações de pedagogia de emergência coordenadas por Ruf. Reinaldo já atuou em nove intervenções mundo-cão afora. Esteve no Quênia, no Líbano, nas Filipinas, em Gaza, três vezes no Curdistão/Iraque e duas vezes no Nepal. Tem um carisma enorme, sorriso largo, longas tranças afro permeadas por lã azul e um sotaque alemão bem suave, que talvez só perceba quem sabe que ele passa meses sem falar português (o idioma de Goethe é a língua “oficial” nas intervenções).

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O rapaz começa sua apresentação mostrando fotos de regiões dizimadas por bombardeios, terremotos, tufões e tsunamis. Na sequência, exibe imagens de equipes de pedagogia de emergência em ação naqueles lugares. Em uma das fotos, um menino brinca de carrinho com um chinelo em frangalhos. “Quando uma criança que passou por um grande trauma recupera essa capacidade de imaginar, sabemos que o trabalho está dando resultado”, explica o terapeuta social.

No segundo dia do workshop, Reinaldo ensina aos participantes algumas brincadeiras com ritmo e movimento que costuma propor durante as ações. Ficou fácil imaginar aquela energia toda colocando 800 crianças para cantar e dançar numa roda gigantesca, sob o calor de 55 graus de um campo de refugiados no Quênia. “Parece que o Reinaldo também vira criança quando está com elas. Meus alunos amavam as brincadeiras com ele. A pedagogia de emergência nos trouxe ótimos resultados. As crianças que estavam apáticas desde o terremoto voltaram a ser mais ativas”, conta Rashi Karki, professora nepalesa de 20 anos que vive no distrito de Lalitpur, sul do país.

Depois de três anos participando intensamente de intervenções fora do Brasil, Reinaldo pretende passar mais tempo por aqui em 2016. Ele quer ajudar a colocar de pé um grupo brasileiro de pedagogia de emergência. Um advogado está cuidando da parte legal para viabilizar o trabalho como ONG ou OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). “Sou brasileiro e vou ao Nepal ajudar crianças traumatizadas, mas a 40 minutos da minha casa existe uma cracolândia. Dá até vergonha. Sei que ali o trabalho seria diferente. Aqueles meninos-zumbis já estão doentes. Mas pretendemos dar suporte para os educadores que lidam com esse tipo de situação. É um trabalho muito duro. E também queremos ter uma equipe que possa agir rapidamente quando acontece uma grande tragédia,” ele vai explicando.

Ex-morador da favela Monte Azul, fincada nas redondezas do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, Reinaldo conhece bem o tipo de trauma que a guerra não declarada das periferias brasileiras também pode provocar. “Demorei para entender que aquilo que acontecia no meu pedaço não era normal. Tive uma infância boa, brincava de bola perto do córrego que cortava a favela, mas a violência estava sempre presente. Vários amigos meus foram presos ou mortos muito jovens. Quando eu tinha 13 anos, tivemos que sair do bairro porque traficantes que haviam se mudado para nossa rua tentaram atirar no meu pai.”

O fato de ter frequentado desde os 7 anos a Associação Comunitária Monte Azul o ajudou a encontrar recursos internos para lidar com aquilo tudo – e para chegar aonde chegou. Fundada em 1979 pela pedagoga alemã Ute Craemer, a Monte Azul também tem seu trabalho fundamentado na pedagogia Waldorf e se tornou referência no tipo de ação que realiza. “Quando começamos com a creche, não queríamos um lugar que ‘amontoasse’ crianças, mas que as protegesse daquela violência toda e criasse nelas um alicerce para a vida inteira. Tinha gente que falava ‘de que adianta ter tudo isso aqui dentro e uma realidade tão diferente lá fora?’. Ora, isso é argumento de intelectual, claro que pode fazer diferença”, esbraveja Ute, que foi convidada para integrar a diretoria do grupo de pedagogia de emergência no Brasil. “Nada se compara a uma guerra de fato. Eu morava na Áustria quando estourou a segunda guerra. A gente se escondia nos abrigos durante os bombardeios e não sabia se a casa estaria de pé quando saísse. Mas há sim muita coisa que podemos fazer por aqui com a pedagogia de emergência. Não faz muito tempo um jovem se matou na frente das crianças da favela.”

Enquanto o grupo não se oficializa, Reinaldo segue com seu trabalho como funcionário dos Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner (ele recebe os voluntários alemães que vêm ao país por meio da instituição e preparara os jovens brasileiros que vão para lá) e faz palestras sobre a pedagogia de emergência. Algumas pessoas ficam tão comovidas que querem saber como se tornar voluntário e pegar o primeiro avião para Gaza. “Eu digo: ‘Amigo, tem certeza que você acha que precisa ir pra Gaza? Que tal dar uma voltinha pra ver como estão as crianças na favela mais perto da sua casa?’”

* O nome foi trocado para preservar a criança

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