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Série especula sobre o que ocorreria se o Sul vencesse a Guerra Civil nos EUA

'Confederate', do HBO, ainda não tem roteiro escrito, mas já foi envolvida em uma polêmica

Por Sérgio Augusto
Atualização:
Encenações da Guerra Civil ainda acontecem na Virgínia, estado americano com maior quantidade de batalhas do conflito 

Quando se pensava que a história contrafactual perdera seu condão ou esgotara seu repertório de especulações, a Amazon.com investiu uma fortuna na produção da telessérie O Homem do Castelo Alto (tema: o que teria acontecido com a América se alemães e japoneses tivessem saído vitoriosos da 2.ª Guerra Mundial), e deu-se tão bem que o canal por assinatura HBO decidiu patrocinar outro ambicioso projeto na mesma linha para suceder a Game of Thrones

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A guerra desta vez é a de Secessão, aquela que em 1861 dividiu os EUA entre nortistas (antiescravistas) e sulistas (pró-escravidão). Por ter servido como pano de fundo para o filme mais popular de todos os tempos, E o Vento Levou, não há quem desconheça seu desenlace, em 1865. Oficialmente, os estados confederados do Sul perderam a guerra. Na série, intitulada Confederate, o exército da União acaba contrafactualmente derrotado pelo general Robert E. Lee na decisiva batalha de Appomattox, e os estados do Sul conseguem manter a escravidão e outras iniquidades intactas em seus domínios.

O roteiro da série ainda nem foi escrito. Confederate é, por ora, apenas um projeto, prematuramente metido numa inevitável polêmica. 

Se o triunfo de Hitler, em O Homem do Castelo Alto, baseada num romance de Philip K. Dick de 1962, não despertou indignação notável na comunidade judaica, que só fez reparos ao uso excessivo de suásticas na divulgação da série, a hipotética vitória dos sulistas em Confederate enfureceu a comunidade negra americana. Uma hashtag (#NoConfederate), criada pela ativista April Reign, que dois anos atrás agitou a entrega dos Oscars com a campanha #OscarSoWhite, tenta mobilizar forças contrárias à produção da série. 

“A opressão dos negros não é assunto para entretenimento”, protestou Reign. “Por que subjugá-los mais ainda numa narrativa opressiva e fantasiosa, tendo em vista o que eles sofreram ao longo do século passada e ainda continuam sofrendo?”, acrescentou, salientando que estamos há apenas dois anos da chacina de Charleston, quando o supremacista branco Dylan Roof matou nove negros e feriu outros cinco num templo metodista e a menor distância da campanha de Donald Trump, com seu séquito de arruaceiros racistas e tremulantes bandeiras confederadas. 

Não por acaso, partiram de Charleston (Carolina do Sul) os primeiros tiros do mais sangrento conflito ocorrido em território americano: 620 mil mortos, um trauma nacional para todo sempre. Sua primeira recriação na tela, Nascimento de uma Nação, de David W. Griffith, resultou num marco histórico do ponto de vista estético, porém tisnado por um roteiro acintosamente preconceituoso. Os negros de Griffith eram bichos papões; os de E o Vento Levou, inocentes, imbecis ou submissos. A persistência desses estereótipos racistas no imaginário cinematográfico foi, de forma oblíqua, uma vitória ideológica dos sulistas.

Ao contrário do que aconteceu com os líderes nazistas, encarcerados, julgados em Nuremberg e por fim executados, os comandantes confederados e a elite algodoeira e escravocrata por eles guarnecida abaixo da Linha Mason-Dixon não só se safaram de punições rigorosas como em pouco tempo recuperaram todo seu poder político e oligárquico, mantendo os negros “em seu lugar”.

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Recentemente uma comunidade negra (da Flórida) saiu em campo para tirar estátuas e rebatizar logradouros com os nomes de militares vencidos pelas forças da União, como John Bell Gordon (que se elegeu senador depois da derrota), Robert E. Lee (que morreu na cama) e Nathan Bedford Forrest (que partiu para a fundação da Ku Klux Klan). Mas os ideais sulistas permanecem vivos e seus templários cada vez mais atrevidos. Há menos de duas semanas, Catherine Templeton, candidata republicana a governadora da Carolina do Sul, foi ovacionada ao se confessar orgulhosa da Confederação dos Estados do Sul. 

A série do HBO nada tem de original, é apenas inoportuna. Em 1953, Ward Moore publicou um romance contrafactual, aqui traduzido pela editora Clássica como E Tudo o Tempo Levou, cujo narrador é um historiador que nos anos 1930, por não aguentar viver numa América subjugada ao conservadorismo sulista, viaja numa máquina do tempo para lutar contra os confederados. 

Pelo menos dois ensaios especulativos sobre as consequências de uma derrota do Norte já saíram neste século: If the South Had Won the War (Se o Sul Tivesse Vencido a Guerra), de MacKinley Kantor, e The Confederate States of America: What Might Have Been (Os Estados Confederados da América: O que Poderia Ter Acontecido), de Roger L. Ranson. Se os sulistas tivessem vencido a guerra, John Wilkes Booth talvez desistisse de assassinar Lincoln e a cidade de Americana não teria sido implantada no interior de São Paulo por confederados trazidos do Alabama pelo coronel William Hutchinson Norris. 

Mas, a exemplo da militância negra, muitos brancos antirracistas se perguntam por que o HBO não preferiu produzir uma série sobre o que teria acontecido se os índios cherokees tivessem fechado com a União e sufocado o avanço secessionista já no Mississippi. Ou, melhor ainda, como seria a América se a Revolução Haitiana tivesse se espalhado pela América 57 anos antes da Guerra Civil. Só especulam sobre o óbvio.

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