Sessão coruja

Nem os mais atrevidos iconoclastas paulistas - Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade - estenderam sua iconoclastia ao cemitério em que acabariam sepultados

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colunista convidado
Por José de Souza Martins
Atualização:
SP - CINETÉRIO/CEMITÉRIO CONSOLAÇÃO - GERAL - Cinema ao ar livre, no Cemitério da Consolação, em São Paulo (SP), na madrugada deste domingo (14). A Cinemateca, em parceria com o Cine Olido, leva ao espaço a mostra Cinetério, com três filmes de terror brasileiros dos anos 70. 14/09/2014 - Foto: GABRIELA BILÓ/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/PAGOS Foto: GABRIELA BILÓ/FUTURA PRESS

A recente tumultuada realização de um evento chamado de Cinetério, a exibição noturna de filmes de terror no Cemitério da Consolação, mostra que nem mesmo os defuntos escapam da incultura e das armadilhas da sociedade do espetáculo. Gente como o padre Ildefonso Xavier Ferreira, cujo túmulo dá diretamente para o corredor em que foram colocadas as cadeiras dos mórbidos espectadores, não escapou à profanação de seu sono definitivo. No ato de cultura iconoclástica, é pouco provável que o Serviço Funerário Municipal e a Secretaria da Cultura tenham aproveitado para dizer aos espectadores que o padre Ildefonso, de camarote no cinema invasivo, fez parte do pequeno grupo de jovens paulistas que teve a ousadia, na noite de 7 de setembro de 1822, na Casa da Ópera, no Pátio do Colégio, de aclamar o príncipe d. Pedro como rei do Brasil. Foi na verdade ele quem gritou Independência ou Morte. Era a armadilha da Independência do Brasil capturando o príncipe, cujo propósito não era necessariamente esse.

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Os três filmes exibidos na madrugada de domingo, pouco depois da hora sinistra da meia-noite, foram As Sete Vampiras, de 1986, Excitação, de 1977, e Ninfas Diabólicas, de 1978. A escolha desses filmes indica o claro propósito de afrontar as crenças e a tradição. Séculos de respeito e temor em relação à morte, em todas as culturas, tombaram inertes ante o poder da cultura da cópia, da falta de criatividade, de respeito e de imaginação. Cinetério é programa que copia o que dizem já ter sido feito no Cemitério do Père-Lachaise, em Paris, e no Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. A cultura da cópia, em todas as partes, preenche o vazio da falta de imaginação e da falta de identificação com as tradições do povo. 

Passei quase um dia inteiro no de Paris visitando os monumentos funerários de celebridades. A poucos passos um do outro, os túmulos de Chopin e de Jim Morrison, polos opostos da cultura musical, estavam rodeados de admiradores em atitude de veneração, mais no daquele do que no deste, naquele mais pessoas em exemplar silêncio e neste mais portadores de garrafas, em igual silêncio. Mesmo aí era perceptível a linha invisível que separa a vida da morte, a morte como um mundo regulado por um código de respeito que impõe interdições e restrições aos vivos. 

Não foi o que aconteceu no Cemitério da Consolação. Até a época da sua criação, os mortos eram sepultados no sagrado, nas igrejas. O Consolação veio a ser uma extensão do sagrado. Nem os mais atrevidos iconoclastas da história paulista estenderam sua iconoclastia ao cemitério em que acabariam sepultados. Os túmulos de Oswald de Andrade, de Tarsila do Amaral e de Mário de Andrade são túmulos sisudos e tradicionais, sem nenhum elo estético com o que foi a mentalidade daqueles cujos restos lá se encontram. 

O espetáculo do Cinetério pode ser visto como um documento de quanto os viventes andam longe da vida. Precisam ver filmes de horror no cemitério para terem algum arrepio de pele em face de um além imaginário e fictício, cópia de culturas que são outras: trazer filme de vampiro pra cemitério daqui é estrangeirice e alienação, coisa de quem tem o traseiro aqui e a cabeça em Paris. Ali ao lado da multidão que veio até de longe, lá dos confins da zona leste, há mortos de histórias reais de terror. É o caso do assassino do “castelinho” da Rua Apa, na Barra Funda, que em 1937 matou o irmão, matou a mãe e se matou em seguida, por uma disputa econômica. Não longe, está o túmulo da rica fazendeira e matriarca que mandou matar, arrancar toda a pele do rosto e jogar no mato o cadáver do genro francês que se casara com sua filha para se casar com seu dinheiro. Aliás, sobre o caso estreou em 1919, no Cine Palace, o filme O Crime de Cravinhos. Ou, um pouco adiante, o túmulo do poeta Moacyr de Toledo Piza, que, numa noite de 1923, na Avenida Angélica esquina com a Rua Sergipe, matara com um tiro a amante que o repudiara, a belíssima Nenê Romano, matando-se em seguida. 

Os organizadores do evento poderiam ter promovido um espetáculo de terror cultural, a mutilação e destruição de autênticas obras de arte nos cemitérios de São Paulo. Só ali no Consolação há vários casos. As tranças de O Pranto de Euterpe, de Nicola Rollo, no túmulo do maestro Luigi Chiafarelli, que foi professor de alguns dos maiores nomes de nossa música, foram arrancadas por vândalos. Provavelmente, transformadas em fumaça e delírio no cachimbo de crack de algum viciado. O belo e original anjo de terra cota e alumínio de Fúlvio Penacchi, que adornava o túmulo de seu sogro, foi destroçado por vândalos, dos muitos que invadem cemitérios à noite para o espetáculo da valentia dos que são valentes só na escuridão. Numa das invasões de um grupo de góticos, para shows privados de sexo e droga, o anteparo de granito de um dos túmulos caiu sobre as pernas de um deles, esmagando-as, enquanto os demais fugiam. Como diz a sabedoria popular, Deus castiga. 

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA USP E AUTOR, DE HISTÓRIA E ARTE NO CEMITÉRIO DA CONSOLAÇÃO, FOLDER PUBLICADO PELA PREFEITURA DE SÃO PAULO EM 2008 

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