Sob o escrutínio da ética

Pesquisas com embriões humanos serão monitoradas no Brasil por um sólido sistema de avaliação

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Por Debora Diniz
Atualização:

"Eu diria que o problema das pesquisas com células-tronco embrionárias é tão sério que não pode ficar na mão dos cientistas." Essas foram as palavras do ministro Cezar Peluso para justificar seu voto com ressalvas à lei de biossegurança. O encerramento do julgamento, já considerado o mais importante da história da Suprema Corte brasileira, foi uma acalorada discussão sobre ética na pesquisa científica. A lei de biossegurança saiu vitoriosa, o que significa que os cientistas brasileiros poderão conduzir suas pesquisas com a tranqüilidade do marco legal. Mas o novo desafio é sobre o significado da ética na pesquisa com embriões humanos. Talvez o tema da ética na pesquisa científica tenha sido uma descoberta para os ministros do Supremo Tribunal Federal, mas não o é para os pesquisadores brasileiros há mais de uma década. Desde 1996, o Conselho Nacional de Saúde coordena um dos sistemas de revisão de ética na pesquisa mais originais e sólidos do mundo. O Sistema Cep/Conep foi instituído após uma extensa consulta às comunidades científicas e o resultado foi a Resolução CNS 196/1996, cujo documento regulamenta o funcionamento dos comitês de ética em pesquisa institucionais e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. São 729 comitês registrados na Conep que, juntos, avaliaram 11.234 projetos em 2007. No Brasil, a pesquisa com células-tronco embrionárias e a pesquisa genética, dois campos de preocupação ética dos ministros do STF, devem ser duplamente avaliadas, isto é, pelos comitês de ética em pesquisa e pela comissão nacional. No caso de pesquisas com cooperação internacional, o projeto deve ser também avaliado pelos comitês de ética dos países parceiros. Nesse sentido, o temor de que os comitês tenham vícios institucionais que favoreçam suas pesquisas em detrimento de princípios éticos de proteção à dignidade humana é reduzido, pois a comissão nacional exerce papel fiscalizador. Além disso, em 2000, o Conselho Nacional de Saúde lançou uma resolução para regulamentar exclusivamente a pesquisa com embriões humanos, antecipando parte das preocupações éticas dos ministros sobre a lei de biossegurança. O tema da ética em pesquisa acompanha o surgimento da bioética. O Código de Nuremberg é conhecido como o primeiro documento de proteção ética aos participantes das pesquisas científicas, sendo uma resposta imediata ao julgamento dos crimes de guerra cometidos em nome da ciência nazista. O objetivo do documento era ser um guia com dez princípios éticos para as pesquisas com seres humanos. Desde então, a exigência de que as pessoas só possam ser incluídas nas pesquisas estando informadas e esclarecidas sobre seus riscos e benefícios é uma marca registrada das regulamentações internacionais. É exatamente por isso que a lei de biossegurança somente autoriza a doação de embriões congelados para a pesquisa após o consentimento dos genitores. Apesar do vanguardismo do Código de Nuremberg, o documento não foi imediatamente incorporado à prática científica. Entendido como uma resposta humanista às atrocidades da guerra, os pesquisadores não o assumiram como uma referência ética para a ciência livre. Foi somente em 1964 que a Associação Médica Mundial propôs a Declaração de Helsinque, um documento de referência internacional para regulamentar a ética na pesquisa em saúde. O objetivo da declaração era assentar as pesquisas médicas na cultura dos direitos humanos, não permitindo que a busca pelo conhecimento se sobrepusesse ao bem-estar dos participantes da pesquisa. Uma matriz ética semelhante está na lei de biossegurança, ao proibir a comercialização de embriões e ao prever que somente pesquisas com finalidades terapêuticas poderão ser conduzidas com células-tronco embrionárias. A proposição de documentos internacionais foi o primeiro passo para a consolidação de valores humanistas na prática científica. No entanto, esses primeiros documentos não foram suficientes para mudar o ethos da ciência. Os anos 1970 foram marcados por graves infrações à ética na pesquisa científica. O Caso Tuskegee, nos Estados Unidos, é um dos mais paradigmáticos. Durante 30 anos, um grupo de 400 homens jovens negros foi incluído em uma pesquisa sobre o ciclo natural de evolução da sífilis. O objetivo da pesquisa era conhecer como a doença agia em pessoas com tratamento à base de penicilina em comparação a um grupo sem tratamento. Esse era um momento da história da medicina em que a penicilina era já o tratamento consolidado para a cura da sífilis, portanto, inaceitável a inclusão de um grupo-controle sem nenhum tratamento. Do total de participantes, apenas 74 sobreviveram à pesquisa. Esses e outros casos mostraram que as regulamentações propostas após a 2ª Guerra Mundial ou mesmo regulamentações de associações científicas não seriam suficientes para demarcar os valores éticos da pesquisa científica. Foi assim que os anos 1970 e 1980 marcaram o surgimento de dezenas de regulamentações éticas nacionais e internacionais para regular e monitorar as pesquisas científicas com pessoas. O Relatório Belmont, publicado em 1974 nos Estados Unidos, é considerado o documento que consolida a bioética e a ética na pesquisa como campos indispensáveis à prática científica. Os princípios éticos propostos pelo relatório estão presentes na Resolução CNS 196/1996, o que estreitou os laços de diálogo ético internacional entre o Brasil e os países de referência para a pesquisa científica. Reconhecer que o Brasil assumiu há uma década o tema da ética em pesquisa como central à política de saúde não significa ignorar as preocupações dos ministros do Supremo Tribunal Federal sobre o futuro da pesquisa com células-tronco embrionárias. É preciso, no entanto, enfrentar os novos desafios lançados pela realidade da pesquisa com embriões a partir do marco regulatório disponível no País. O sistema brasileiro de revisão ética encontra-se vinculado ao controle social em saúde, seguindo a recomendação do ministro Peluso de que ciência é algo muito importante para estar apenas nas mãos dos pesquisadores. *A antropóloga Debora Diniz é professora da UnB e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

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