O mineiro Gustavo Lacerda acha que era só um espectador das artes até transferir sua fotografia da rua para dentro de um estúdio. Foi aí, conta, que passou a fazer arte também. Ele tem 44 anos e fotografa há 20. Começou como fotógrafo de jornal e revistas. Em 2007, atrás de suas origens nordestinas, foi conhecer o sertão de Pernambuco, que povoava as histórias da família contadas pelo avô e pelo pai. Voltou com o ensaio Betânia (nome da cidade onde os dois nasceram), uma série de retratos de gente que vive à margem, os não protagonistas, os invisíveis na sombra da sociedade de consumo. Foi ali que teve a ideia de fotografar Albinos, seu aclamado trabalho que rendeu livro, exposição e um caminhão de descobertas.
Porque Lacerda, primeiro, achou que retratar pessoas ensolaradas como aquelas ficaria “esteticamente interessante”. Mas, durante o processo, descobriu que seria impossível tapar a força política daquelas imagens. Distúrbio congênito caracterizado pela ausência de pigmentação na pele, o albinismo marca as pessoas. Elas têm a pele muito clara, cílios e cabelos quase brancos e são ultrassensíveis à luz do sol. E são vítimas de preconceito.
A maioria das pessoas convidadas a posar para Lacerda jamais tinha sido chamada para nada que não fossem arapucas para zombaria, dor e vergonha. Ao fotografá-las de maneira sensível e eloquente, Lacerda lhes confere o que é de direito: altivez, força e voz.
Lacerda quer continuar acompanhando o crescimento de parte das famílias retratadas. No belíssimo livro feito pelas editoras Madalena e Terceiro Nome, folhas de papel-manteiga intercalam as páginas com os retratos, tentando passar a sensação da pele quase transparente dos albinos e daquelas imagens claras, até então na sombra, sendo lentamente reveladas. Há também a reprodução de uma carta de Ana Beatriz Vassimon, mãe das gêmeas Mariana e Helena, que foram fotografadas, contando como foi receber as duas no colo depois o parto. Ela escreve: “Aprendemos que a vida é mesmo rara, e pra seguir em frente, aproveitando o melhor: protetor solar e muita alegria”.
Em que lugares você fotografou? Nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão. A Ilha de Lençóis (MA) foi considerada nos anos 1970 a localidade com maior incidência de albinismo per capita do País. Hoje tem aproximadamente 300 habitantes, 11 dos quais, albinos. É um lugar com sol durante quase o ano todo, dunas, ou seja, muita claridade. Então, a maioria deles acabava morrendo de câncer de pele ou saindo de lá. E exatamente por ser uma ilha tão pequena havia vários casamentos consanguíneos, por isso o alto índice de albinismo. Num lugar tão encantador e quase paradisíaco foi difícil manter o foco no ensaio, manter os retratados no estúdio. Era tentador fazer ao ar livre, naquela bela paisagem.
O que você descobriu fotografando pessoas albinas? A importância do fazer das fotos para elas também. São homens, mulheres e crianças que se sentem à margem mesmo, e vivem literal e metaforicamente na sombra. Sofrem por ser daquele jeito. Então eu quis mostrar a beleza que há ali também. Eram pessoas que geralmente se escondiam da luz, ficavam sempre escondidas e protegidas em suas casas, porque quando saíam sofriam preconceito. As crianças representadas reclamaram muito de bullying na escola. Percebi que o processo de fazer os retratos deveria ser cuidadoso.
E como foi? Eu levava sempre uma figurinista e um maquiador, e isso mudava a forma como os retratados ficavam diante da câmera. Eles passaram a mostrar uma vaidade maior, autoconfiança. A luz era montada como se fosse um dia nublado, porque era a forma como eles se sentiam mais confortáveis. Havia uma arara de roupas para cada um escolher como queria se vestir, mas sempre em tons pastel. E aí colocávamos o fundo como se fossem portraits antigos, a depender do tom da pele, do cabelo e da roupa de cada um. A nossa base era a cor do cabelo ou da pele de cada um. O elemento essencial foi essa preparação toda, eles se encarando no espelho antes e aceitando estar ali.
Alguma coisa mudou na vida dessas pessoas depois das fotos? A maioria não queria ser fotografada, mas alguns vieram me procurar para participar depois que o trabalho ganhou repercussão. Uma garota de Macaé (RJ) me escreveu dizendo que não se sentia bonita, que já tinha sofrido muito na escola e queria participar das fotos. Ela veio de ônibus a São Paulo. No começo foi difícil, no fim ela já estava até se achando bonita. O ensaio teve essa importância, de eles estarem ali de frente pra câmera, enfrentando aquela situação. Acredito que, sobretudo em relação ao preconceito, um trabalho assim causa mudanças internas nas pessoas.