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Luzes da cidade

Sombras no Iraque

A conta da invasão de Bush chegou e Obama não sabe lidar com o problema

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:
Members of the Iraqi security forces take part in an intensive security deployment during sunset in Najaf, south of Baghdad, June 18, 2014. Iraq has asked the United States for air support in countering Sunni rebels, the top U.S. general said on Wednesday, after the militants seized major cities in a lightning advance that has routed the Shi'ite-led government's army. REUTERS/Alaa Al-Marjani (IRAQ - Tags: CIVIL UNREST POLITICS MILITARY) Foto: Alaa Al-Marjani/Reuters

Quando as notícias sobre o vertiginoso desmoronamento do Iraque começaram a aparecer na mídia americana, houve quem contasse com o silêncio ensurdecedor de um grupo, os neocons. Aconteceu o contrário. Os ideólogos que se uniram em torno de George W. Bush na formação coesa de um círculo de dançarinas de Esther Williams nas piscinas dos musicais da MGM não só pipocaram nas telas como já chegaram tocando tambor. O elenco é o de suspeitos habituais: Dick Cheney, o ex-vice de Bush, e Paul Wolfowitz, ex-subsecretário da Defesa sob o impenitente Donald Rumsfeld. Não só querem mais intervenção como colocam a culpa pela crise em Obama - o ex-senador que deve sua eleição em boa parte a ter votado contra a invasão do Iraque.

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Obama abandonou o Iraque para ser invadido pelos fanáticos do Exército Islâmico da Síria e do Levante porque não deixou tropas estacionadas lá depois da retirada de 2011, acertada ainda no governo Bush, diz a narrativa conservadora. Detalhe: o governo do gângster sectário Nouri Al Maliki se recusou a tolerar até um pequeno contingente de três mil soldados oferecido por Obama. Em 2011, al-Maliki já estava obedecendo ordens de seus irmãos xiitas em Teerã. E jogando lenha na fogueira sectária, iniciada com ocupação das tropas aliadas a partir de 2003.

A queda da segunda maior cidade iraquiana, Mossul, para os sanguinários rebeldes sunitas surpreende o acadêmico, autor e historiador militar Andrew Bacevich. Não porque aconteceu, mas pela rapidez. Coronel da reserva que serviu no Vietnã (“uma guerra estúpida e catastrófica”) de 1970 a 1971, Bacevich é autor, entre outros, do best-seller The Limits of Power: The End of American Exceptionalism (2008), de Washington Rules: America’s Path to Permanent War (2010) e de Breach of Trust: How Americans Failed their Soldiers and their Country (2013). Quem examina a história dos conflitos descrita nessas obras repete o truísmo: ninguém melhor do que um militar para argumentar contra a guerra.

E esse professor de história e relações internacionais da Universidade de Boston tem mais do que a experiência no campo de batalha no Vietnã. Em maio de 2007, seu filho, o primeiro-tenente Andrew John Bacevich, morreu num ataque suicida quando integrava uma patrulha na província iraquiana de Salah al-Din. Duas semanas depois, o pai publicou no Washington Post o artigo Perdi meu Filho numa Guerra à qual me Oponho. Nós dois Cumpríamos nosso Dever, texto devastador em que o contraponto do luto profundo não obscurece o argumento que Bacevich já fazia contra a invasão do Iraque.

Nos últimos dias, afrontado com a volta dos responsáveis pelo desastre iraquiano, o professor voltou à carga em entrevistas na TV e num artigo na revista Commonweal em que desancou a hipocrisia dos que têm saudade de uma “ordem global” do pós-guerra. “Que ordem global?”, pergunta ele num almoço com a repórter, entre uma gravação para a rede PBS e o trem de volta para Boston. Bacevich está se aposentando na universidade, onde dirigia o Departamento de Relações Internacionais. “A chamada ordem mundial”, continua, “consistia num pequeno clube, com europeus, depois japoneses e sul-coreanos.” Até o momento que, segundo Bacevich “Obama estragou tudo, na versão da direita”, os EUA não pareciam muito preocupados com a democracia global. “Cruzamos os braços para atrocidades na Guatemala, apoiamos os militares brasileiros.” A seguir, a conversa com o Aliás. 

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Como o sr. vê a crise no Iraque?

Os acontecimentos recentes surpreendem e não surpreendem. Há meses o nível de violência é extraordinariamente alto e devemos tomar a medida dos número de civis mortos a cada mês. Só em maio, 800 pessoas foram mortas. Então não deve ser surpresa o fato de que o país esteja num processo de desintegração. O que surpreende é o sucesso e a rapidez. Os sunitas são lutadores ferozes, mas são em número relativamente pequeno. A facilidade com que derrotaram as tropas iraquianas levanta dúvidas sobre o esforço americano para reconstruir o Exército.

Desde a deterioração da última semana, os chamados neocons que defenderam a invasão do Iraque reapareceram.

Essa gente que se enganou tanto agora tem a temeridade de aparecer na TV para criticar o presidente Obama, pedindo mais ação militar. Como se atrevem? São partidários desavergonhados que não têm o menor interesse em revelar a verdade sobre a política americana no Iraque ou admitir seu fracasso. Eles querem é marcar pontos políticos. Vão criticar o presidente sem ao menos admitir seu papel original na defesa da guerra ou as consequências desastrosas. A segunda questão é: por que a mídia mainstream continua fornecendo a eles uma plataforma? A mídia, especialmente eletrônica, é dominada por uma mentalidade de Washington. E vê tudo do ponto de vista partidário - um fato ajuda ou prejudica o presidente? Acho que os produtores e editores selecionam quem vai aparecer no programa político de domingo ou vai ser convidado para escrever um editorial com essa mentalidade.

O que acha de pesquisas que mostram apatia do americano sobre política externa?

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Sim, há considerável apatia sobre política externa entre o público americano. Mas o mesmo não poderia ser dito sobre o Brasil? A vida é dura, a luta cotidiana consome as pessoas. Os brasileiros, é claro, não se preocupam da mesma forma com o papel global do Brasil. Os americanos não são alienados da política americana, na minha opinião. Eles aprenderam uma lição importante depois do 11 de Setembro que o Obama endossou: invadir e ocupar países no mundo islâmico é uma estupidez. Promessas de vitória são ocas, projeções de custo são completamente estouradas. Um elemento do debate sobre o Iraque hoje é que o presidente reconhece a falta de apoio popular e de boa parte do Congresso para outra guerra por lá. O que não quer dizer cruzar os braços, mas as opções agora são em boa parte limitadas pelo que aconteceu nos últimos 12 anos.

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E a questão humanitária?

Se a questão é humanitária, vamos nos fazer perguntas práticas. O que podem fazer os EUA e outros países para aliviar o enorme sofrimento dos civis? A resposta não é bombardeio aéreo. Bombardeio não alivia e sim cria sofrimento. Mas, se as pessoas fogem em massa para campos de refugiados, como acontece com os sírios na Jordânia, os EUA devem contribuir com recursos para aliviar a situação deles, devemos aumentar contribuições para as Nações Unidas. Essa ideia é muito impopular, mas é uma solução prática. Ou devemos receber um número de refugiados no país. Claro que não podemos acomodar refugiados de toda parte do mundo. Mas nosso território é grande, temos tradição de país imigrante, poderíamos receber um certo número. Já essa ideia é mais impossível ainda de ser aceita politicamente. Vejo todo esse blá-blá-blá em Washington sobre preocupação humanitária e acho enganoso. Há pouca gente lá que se importe com o sofrimento dos muçulmanos para gastar somas sérias de dinheiro com eles. 

O que achou do anúncio de Obama sobre o envio de 300 assessores militares?

Ele deixou em aberto a possibilidade de bombardeios. Tanto do ponto de vista político como militar, posso entender por que não quer mergulhar de cabeça. O problema é que essa ação em pequena escala não deve resolver o problema: reforçar a espinha dorsal do Exército iraquiano e derrotar os rebeldes. Temos um possível cenário de escalada, daqui a duas semanas ou um mês.

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A invasão do Iraque é a responsável pelo que acontece agora no país?

Sim, no sentido de que a invasão americana no Iraque foi catalisadora. Mas o que catalisa promove precondições já existentes. Se pudermos voltar atrás, a resposta remonta à história do Oriente Médio desde a 1ª Guerra, quando a Grã-Bretanha, numa luta de morte com a Alemanha, decidiu não apoiar o Império Otomano e se aliou à França. Países como Iraque, Egito, Líbano, Síria e Jordânia são resultados disso. Ingleses e franceses não estavam interessados em democracia ou no bem-estar dessas populações. Para satisfazer seu interesse imperial dividiram aquela parte do mundo. Quando os ingleses se cansaram, como aconteceu na Índia, viraram as costas. A ingenuidade americana foi, depois da 2ª Guerra, assumir um papel de responsabilidade pela bagunça que herdaram dos ingleses. Fizemos isso por causa do petróleo, para conter a União Soviética e para garantir a segurança de Israel. Uma sucessão de presidentes, Truman, Eisenhower, Kennedy, acreditou que os EUA eram inteligentes e fortes o bastante para se impor sobre o Oriente Médio. 

Essa ideia voltou com George W. Bush?

Sim. Veja que o objetivo da invasão não era simplesmente derrubar Saddam Hussein ou desmantelar “armas de destruição em massa” que não existiam. Ele queria refazer o Oriente Médio à imagem dos EUA. Queria eliminar o antiamericanismo na região e espalhar valores liberais. Na cabeça de gente como Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz, o Oriente Médio não ficaria muito diferente da Europa. O Iraque era o projeto grandioso para deslanchar uma vitória que levaria sucesso a outros países. Entre os muitos erros de cálculo estava este: vitória. Derrubamos Saddam e foi tudo para o inferno - não só no Iraque, mas na região. Agora estamos cercados por desordem no Oriente Médio e não sabemos como responder. O Exercito Islâmico da Síria e do Levante é filho da invasão americana no Iraque. Sob o brutal Saddam não havia Al-Qaeda lá. Ao eliminá-lo e promover o caos, a contínua presença americana criou a abertura para a Al-Qaeda se instalar.

O que acha da aproximação entre EUA e Irã para resolver a crise do Iraque?

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Pode haver algum mérito, sim. A discussão, a meu ver, não é Irã e EUA colaborarem num senso tático para impedir o Iraque de se dissolver. Devemos, de fato, colaborar estrategicamente e não taticamente. Faço aqui uma comparação com o Vietnã. Invadimos o Vietnã do Sul na ilusão de que seria vital para nossos interesses. Não era. Quando Nixon admitiu que não havia vitória possível, calculou como obter algum benefício da derrota, reduzir o custo do fracasso. Até então os EUA se recusavam a falar com a China. A abertura para a China, brilhantemente proposta por Nixon, subtraiu um grande adversário de nosso país na região. E complicou a situação da União Soviética, foi um dos fatores de seu fim. Precisamos usar a mesma lógica com o Irã, examinar como uma abertura nos interessa. Não posso afirmar que os líderes do Irã sejam sérios sobre a aproximação, mas não tenho dúvida de que ela merece ser explorada.

O que o sr. pensa da visão de Obama sobre política externa, que ele articulou em maio num discurso na academia de West Point? 

Eu definiria Obama com um pragmático sem imaginação. É bom ser pragmático, não ser movido por ideologia. É uma qualidade positiva que faltava a George W. Bush. Mas Obama carece de criatividade. Ele não consegue, a partir de seu instinto realista, montar um grande cenário de política externa. Discursos ele faz. Como aquele tão anunciado no Cairo, em 2009. Ali, ele prometeu recomeçar em outros termos a relação com o Oriente Médio. E não se viu ação nenhuma. O contraste, de novo, é com Nixon. Nixon era cínico, imoral e desonesto. Mas via oportunidades para o país no mundo, algo que não vi Obama demonstrar. E o problema também é que ele se cerca de medíocres em política externa, como Susan Rice e Hillary Clinton. 

 *Andrew Bacevich é historiador militar, professor da Universidade de Boston e autor de 'Os limites do poder'

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