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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Tão perto, tão longe

Atualização:
Ilustração: DW Ribatski 

:::MUNDO REAL::: Esta ficção foi baseada nos seguintes fatos de 2014: Em março, um avião da Malaysia Airlines que fazia a rota Kuala Lumpur-Pequim desapareceu dos radares com 239 pessoas a bordo. Até 26/12, ele ainda não havia sido encontrado. Em julho, outro avião da mesma companhia, com 298 pessoas, caiu no leste da Ucrânia quando viajava de Amsterdã a Kuala Lumpur. Teria sido abatido por um caça militar ucraniano. 

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Por que Kuala Lumpur? 

Na verdade, meu editor disse “por que logo Kuala Lumpur, porra?!”. Argumentei que as cidades asiáticas que podiam me interessar já estavam reservadas para os outros participantes do projeto; ele mais uma vez me cobrou por que a Ásia e não outro continente, “por que a Malásia, cacete?!”. Podia ter dito, mas não disse a ele, que Kuala Lumpur era a sexta cidade mais visitada do mundo, mais que Roma, Hong Kong, Praga, Pequim e Buenos Aires - todas, aliás, já incluídas no projeto. Que consistia no seguinte: uns dez escritores, ligados ou não à editora, viveriam de seis meses a um ano numa cidade estrangeira e de lá voltariam com um livro de ficção “impregnado do mood local”, que podia ser concluído ou mesmo todo escrito na volta ao Brasil. 

“Malásia! Faça-me o favor! Bangcoc e Cingapura, por exemplo, não foram escolhidas por nenhum dos autores. Não entendo por que você não pensou em nenhuma das duas. Até Sumatra teria muito mais appeal que Kuala Lumpur, a começar pelo nome: Su-ma-tra... Ao sul de Sumatra. Conhece o filme? East of Sumatra no original. Nunca entendi por que aqui o leste virou sul. Vai ver o tradutor se amarrava numa aliteração. Nada acontece em Kuala Lumpur. Não sei o que tantos turistas vão fazer lá, além de compras em seus cento e tantos shoppings e subir ao topo daquelas torres de 300 metros de altura.”

Quatrocentos e cinquenta e dois metros, corrigi meu perplexo editor. E antes que ele reagisse, acrescentei: são as maiores torres gêmeas do mundo. Se você viu o filme Armadilha... 

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Sim, ele vira as torres sendo assaltadas naquele sub-James Bond com Sean Connery e Catherine Zeta-Jones. 

“Um horror. As torres e o filme. Se a Al-Qaeda derrubasse aqueles dois espigões geminados, aí sim Kuala Lumpur ganharia destaque na imprensa mundial.”

Pode esquecer. Os malaios são tão sunitas quanto o pessoal da Al-Qaeda. O risco de uma catástrofe como aquela, na Malásia, é praticamente zero.

Na antevéspera de nosso novo encontro a capital da Malásia, a cidade em que nada acontecia, tomou conta do noticiário justamente por causa de uma catástrofe aérea. Das mais bizarras de todos os tempos, e certamente a mais bizarra da história da aviação malaia - o que vale dizer a mais bizarra da história da Malaysia Airlines. 

Sábado, 8 de março de 2014. Um Boeing 777-200ER da Malaysia, voo 370, que partira de Kuala Lumpur em direção ao Aeroporto Internacional de Pequim, com 239 pessoas a bordo, simplesmente sumiu. Decolou, trocou sua última mensagem com a torre do aeroporto menos de uma hora depois da partida e, após ser localizado por um radar sobre o Mar de Andamã, não deu mais sinal de vida. 

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E nós aqui no Brasil a contar quantas horas ainda faltavam para o happy hour de sexta-feira. A Malásia fica dez horas a nossa frente. Quando fomos dormir fazia já pelo menos cinco horas que as autoridades competentes e a Malaysia Airlines haviam reconhecido o avião como irremediavelmente perdido em algum ponto do Golfo da Tailândia. 

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Meu editor nem esperou a reunião de segunda-feira para me provocar. “Dou a mão à palmatória. Tudo pode acontecer em Kuala Lampur”, alfinetou num e-mail, grafando errado, de propósito, o nome da cidade em que eu teimara ambientar minha participação no projeto “Tão perto, tão longe” (sim, uma homenagem sibilina a Cole Porter). Mais não disse. Passei o resto do domingo esperançoso de que minhas propostas seriam aceitas. 

Pois àquela altura eu planejava não só ir para a Malásia como escrever um livro de não ficção, a partir do sumiço do Boeing.

“Tsk, tsk, pirou de vez. Kuala Lumpur eu consigo digerir, mas mudar o projeto, impossível. Invente uma história passada lá, narrada na primeira pessoa ou na terceira, do jeito que achar melhor, pode até começar falando do tempo, das monções... Tem monção na Malásia, não tem?... Esqueça o avião que sumiu. Nosso projeto é voltado única e exclusivamente para livros de ficção.”

Em vão tentei convencê-lo de que meu livro poderia ser uma exceção, que não havia mais barreira entre ficção e não ficção no universo literário, inventei até que o Estado de S. Paulo planejava para o fim do ano um caderno especial com articulistas e escritores escrevendo contos sobre alguns dos acontecimentos de maior destaque em 2014. Assoberbado, chutou o resto da conversa para dali a sete dias.

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Na segunda-feira seguinte, lá estava eu, cheio de anotações para robustecer minha proposta. 

Minha ideia era entrevistar familiares dos desaparecidos com o Boeing da Malaysia Airlines, primeiro em Kuala Lumpur e depois na China (dos 227 passageiros a bordo, 152 eram chineses), a família do piloto, que era malaio, e apurar direito aquela história dos dois iranianos que viajavam com passaportes roubados e por isso acabaram tomados por terroristas, examinar cada uma das teses mirabolantes sobre o acontecido divulgadas na mídia internacional: atentado terrorista, sequestro, volatização...

“O que você desconfia que aconteceu?” 

Pelo tom em que fez a pergunta, desconfiei que estivesse cedendo à minha lábia. Ao menos curioso estava. Ninguém sabe o que de fato aconteceu, respondi. Daí a enxurrada diária de palpites e delírios conspiratórios. Já suspeitaram do piloto, que ele teria sequestrado e levado o avião para um arquipélago remoto. Já suspeitaram dos americanos, que o teriam escondido em alguma base militar asiática. Já desconfiaram até de piratas extraterrestres. Absurdo atrás de absurdo. Como esconder um Boeing com mais de 200 pessoas dentro? 

“Também não creio em atentado terrorista. Algum radar teria registrado a explosão e haveria destroços do avião espalhados no mar, mas nada foi encontrado até agora. Se bem que aqueles dois iranianos com passaportes roubados, sei não, sei não.”

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Sua incontrolável cisma com os iranianos não me permitiu deduzir de cara se o sumiço do Boeing começara enfim a interessá-lo como tema para um livro ou se apenas aproveitara a deixa para maldizê-los mais uma vez. Ele sabia que os iranianos já haviam sido inocentados, que eram meros dissidentes políticos em busca de asilo na Suíça, um com passaporte austríaco, outro com passaporte italiano. 

Naquela manhã um novo delírio agitou as mídias sociais: a tragédia do 370 da Malaysia Airlines fora profetizada dois anos antes por Shakira e o rapper Pitbull, na letra de Get It Started. Uau!

Se eu desconhecia a música até aquele dia, imagine o grau de ignorância do meu editor, que de Shakira só apreciava os coxões e de Pitbull, bem, pit bull, para ele, era apenas uma raça de cachorro. 

Tivemos de ler a letra de Get It Started no Google. Ok, havia uma referência a Malásia (“Now it’s off to Malaysia”), a dois passaportes, três cidades e dois países (“Two passports, three cities, two countries, one day”), mas o referido Ali (“No Ali, no Frazier, but for now to Malaysia”) não era um jihadista mas Muhammad Ali, que derrotara Joe Frazier numa luta realizada em Manilha em 1975. 

“Maluquice total. A música é um lixo, mas as coincidências, convenhamos, são intrigantes. Os dois passaportes, os dois países, as três cidades. Três? Kuala Lumpur, Pequim, qual é a terceira?”

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Ho Chi Minh. Seu aeroporto, segundo consta, entrou em contato com o Boeing tão logo ele decolou de Kuala Lumpur.

Por mais um mês, remoemos nosso impasse. Até que ele finalmente capitulou. Eu sairia do projeto e faria um solo não ficcional sobre os envolvidos indiretamente no sumiço do avião. Ao contrário daquela tragédia nos Andes, não sobrara ninguém para contar sua verdadeira história - ou assim ao menos se acreditava.

A seis dias de minha partida, passei na editora. Escolhera a rota mais fácil para chegar à Malásia, via Amsterdã. Conseguira uma passagem baratinha para um voo que sairia do Galeão na segunda. Três dias depois pegaria um voo da Malaysia Airlines pra Kuala Lumpur e ...

“Malaise Airlines?! Logo a Malaise Airlines! Não tem um jeito menos arriscado de chegar a Kuala Lumpur?”

Um raio não cai duas vezes num mesmo lugar, ponderei.

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“Avião não é raio. Boeing 777?”

É. Fique tranquilo: um Boeing não some duas vezes sobre um mesmo oceano. De mais a mais, vamos sobrevoar terra firme o tempo todo: Alemanha, Polônia, Ucrânia, até chegarmos à Malásia. 

“Estava só brincando. Sou pessimista, mas supersticioso não sou não. Que tal um almoço de despedida? Só nós dois. Hoje já é... 8, você parte no dia 14. Puta merda, Quatorze Juillet, le jour de gloire est arrivé, já estamos no meio de 2014. Este ano voou. Não pela Malaise Airlines, claro, rá, rá, rá.”

Por mim, tudo bem. 

“Que tal sábado, lá em casa?”

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Combinado. 

“Não sou supersticioso, mas sou meio chegado à cabala. Sabe de cor o número do seu voo de Amsterdã pra Kuala Lumpur?”

Dezessete.

“Hum, deixe-me ver. Malaysia Airlines somam dezessete letras.”

Dezesseis.

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“Dezessete caracteres com espaço. Não é assim que se mede hoje em dia?”

E isso é bom ou é mau?

“De cabeça não sei. Tenho de consultar meus alfarrábios.”

Ele afinal esqueceu de consultar os alfarrábios, eu me esqueci do cabalístico 17, mas juro que não foi de propósito que perdi o voo MH17 da Malaysia Airlines que ao meio-dia de 17 de julho partiu de Amsterdã rumo a Kuala Lumpur. Onde agora me encontro, com muito mais gente para entrevistar.

JORNALISTA, ESCRITOR, COLUNISTA DO ESTADO. NASCEU NO RIO DE JANEIRO (RJ). AUTOR DE CANCIONEIRO JOBIM (JOBIM MUSIC), LADO B (RECORD) E ESTE MUNDO É UM PANDEIRO (COMPANHIA DAS LETRAS)

Opinião por Sérgio Augusto
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