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Terrorismo 'faça você mesmo'

Uma série de atentados violentos deixou pelo menos 95 mortos na França e na Alemanha nas últimas duas semanas. Desta vez, não foram usados fuzis ou bombas, mas facas, um machado, um caminhão alugado. Afinal, de que “terror” estamos falando? Para o historiador Gabriel Zacarias, os assassinatos em massa recentes resistem à narrativa clássica do “ataque vindo de fora”. Atos de terror se confundem cada vez mais com explosões individuais de violência cega – um quadro nebuloso que, usado por extremistas para amplificar o medo, faz a barbárie parecer próxima, prestes a acontecer em qualquer lugar

Por Gabriel Zacarias
Atualização:

Quem seguiu o noticiário nas últimas semanas teve a impressão de que a Europa vive uma onda de ataques terroristas sem precedentes. Porém, em vez dos habituais “homens-bomba” ou dos tradicionais fuzis Kalashnikov, vimos uma predominância de ataques de armas brancas ou ainda casos mais inusitados, como o do ataque em Nice, onde se usou um veículo pesado (sem carga de explosivos) como meio de assassinato em massa. Ataques, ademais, perpetrados por indivíduos isolados, com poucas ou mesmo nenhuma conexão explícita com organizações terroristas. Cabe então perguntar – de que “terrorismo” estamos falando?

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Desde que um novo momento de atentados terroristas se iniciou na França, com o ataque ao semanário Charlie Hebdo em janeiro de 2015 – a onda anterior de terrorismo no país havia sido em 1996 como decorrência de conflitos na Argélia –, impôs-se como inquestionável a narrativa do ataque vindo de fora, de uma “situação de guerra”, como afirma insistentemente o presidente francês François Hollande. Mas, em muitos pontos, os fatos têm resistido à narrativa. Os autores de ataques são, em geral, franceses nascidos e criados no país, e são poucos os casos daqueles cujas relações materiais com o Estado Islâmico – de treinamento, financiamento ou orientação – tenham sido já comprovadas. Na maior parte dos casos, a relação se dá no plano da representação, com uma adesão aos símbolos do Estado Islâmico, e ao frequentar redes sociais dedicadas aos jihadistas. Na última leva de ataques, o descolamento entre os fatos e a narrativa se tornou maior do que nunca, e a vontade de dobrar os fatos à narrativa ganhou traços caricaturais. A melhor prova de “radicalismo islâmico” apresentada no caso de Mohamed Lahouaiej-Bouhlel – que jogou um caminhão alugado sobre uma multidão em Nice – foi o fato de que este deixara sua barba crescer pouco antes de cometer o ato.

Já na Alemanha – onde a série recente de pequenos ataques foi vista por conservadores como consequência do acolhimento dado aos refugiados –, a prova de que o jovem de 17 anos, que atacou com um machado os passageiros de um trem em Wurtzbourg, seria na verdade um terrorista internacional, estaria no fato de que este possuía um desenho da bandeira do Estado Islâmico – desenho, aliás, feito de próprio punho. No bolo da suposta onda de ataques ainda entrou o caso do refugiado sírio que atacou uma colega com o facão da cozinha do restaurante onde trabalhavam em Reutlingen, ferindo depois outros passantes em sua fuga, até ser atropelado. Um acontecimento sem dúvida violento, mas que, como reconheceu o jornal francês Le Monde, está mais para um fait divers.

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Todos esses casos dificilmente podem ser igualados de maneira simples à chacina ocorrida em Paris em novembro de 2015 – onde era necessário planejamento coletivo e porte de armas pesadas. Mas o que dizer do assassinato do padre Jacques Hamel em Saint-Etienne-du-Rouvray, no início da semana? O autor do crime era monitorado pela polícia antiterrorista, tendo sido preso ao tentar evadir-se à Síria, e a escolha do alvo foi sem dúvida por motivos religiosos. Apesar disso, a forma do ataque é semelhante à dos demais, um ato simples, um ataque de arma branca executável com pouco planejamento. Outro ponto comum entre este e alguns dos autores dos últimos ataques: muitos tinham histórico de distúrbios psiquiátricos – Lahouaiej-Bouhlel, o assassino de Nice, tinha um passado de violência e usava medicamentos controlados, enquanto Adel Kermiche, o assassino de Saint-Etienne-du-Rouvray, passava por instituições psiquiátricas desde os 6 anos de idade.

Em meio a esse quadro pouco claro, o fio comum que salta aos olhos é o uso de uma forma de violência que nos parece bárbara. E se essa violência é bárbara, é por ser percebida como externa ao domínio da cultura. Isso se deve menos ao seu caráter quantitativo, pouco importante nos ataques recentes, e mais ao seu aspecto qualitativo. Ou seja, é a forma de violência que esses acontecimentos colocam em evidência que parece escapar às formas de violência socialmente codificadas. Segundo o sociólogo alemão Jan Philipp Reemtsma, a formação da cultura ocidental foi acompanhada por uma crescente normatização da violência, implicando no rechaço das formas de violência que não se enquadrassem nos preceitos da racionalidade instrumental. Isso quer dizer que nossa cultura reconhece – mesmo que para rechaçar – a violência que é subordinada a fins práticos, isto é, que é apenas um meio para obtenção de outros objetivos. Nesses casos, a destruição do corpo do outro pode ocorrer, mas só como efeito colateral – por exemplo, no caso de um homicídio durante um assalto, cujo fim principal é a obtenção de riqueza. Há, porém, uma forma de violência que visa como fim principal a destruição do corpo. Essa forma de violência é chamada por Reemtsma de “violência autotélica”, pois possui seu fim (telos) em si mesma. Essa forma de violência não se enquadra, portanto, na racionalidade ocidental moderna, que é uma racionalidade-orientada-para-os-fins, sendo tratada como “loucura” ou “barbárie”.

Um caso típico de violência bárbara foi identificado com o nome de amok. O termo se popularizou no começo do século 20 graças ao romance homônimo do suíço Stefan Zweig, mas foi originalmente forjado pela etnologia do século 19. Estudando povos não-ocidentais, e procurando identificar as formas “bárbaras” da violência, os etnólogos colonizadores observaram o fenômeno de indivíduos que, após acumular frustrações e humilhações pessoais, atacavam a esmo outros indivíduos, em explosões de raiva assassina, geralmente munidos de armas brancas. Foi esse tipo de fenômeno que batizaram de amok, tomando o termo emprestado da língua malásia. A descrição parece se adequar aos últimos ataques. Como entender esse curioso parentesco entre o amok e o terrorismo atual?

O que os casos mais recentes revelam é uma confusão crescente entre a explosão da violência cega – puras manifestações da violência autotélica como retorno do reprimido da cultura – e o terrorismo. Essa confusão é voluntária tanto da parte daqueles que promovem o terrorismo quanto daqueles que deveriam combatê-lo. Organizações como o Estado Islâmico não deixam de reivindicar para si qualquer ato que possa parecer prova de sua capacidade de fazer mal ao Ocidente, passando a incentivar através das redes um terrorismo capilar ao estilo “faça você mesmo”. Os chefes de Estado se apressam em enquadrar todo ato como terrorista, justificando assim a ampliação de seus poderes sobre a população, com o uso crescente de dispositivos de exceção – como o Estado de emergência na França, prorrogado pela terceira vez consecutiva após o incidente em Nice. Um Estado de emergência, aliás, já bastante recrudescido para garantir a realização da Eurocopa, e cujo aparato policial foi usado mais para reprimir as manifestações populares contra as reformas trabalhistas, se mostrando porém ineficaz na prevenção de novos ataques. Grupos de mídia, por sua vez, tampouco hesitam antes de estampar nas manchetes versões grandiloquentes sobre a “ameaça terrorista” e o “perigo islâmico”. O extremo parentesco entre as posições supostamente opostas fica evidente quando comparamos o discurso mobilizado pelos dois lados. A manchete que o semanário francês de direita Valeurs Actuelles estampava em sua capa da semana passada, “Destruir os islamistas”, faz eco ao apelo do Estado Islâmico aos seus seguidores para lutarem uma “contra-cruzada” contra o catolicismo. E, quanto mais franceses de origem muçulmana forem enquadrados como inimigos externos e terroristas em potencial, mais o Estado francês estará fazendo o mesmo jogo do EI, que quer acabar com “zona cinza” entre “fiéis” e “infiéis”.

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Talvez fosse mais proveitoso, em vez de deixarmos todas as explicações na conta do terrorismo – solução que parece mesmo enobrecer atos muito menos grandiosos – nos questionarmos sobre o que esses acontecimentos dizem sobre o lugar da violência na sociedade contemporânea. À época dos ataques às Torre Gêmeas, a relação entre o terrorismo do século 21 e os casos de amok já havia sido notada pelo teórico crítico Robert Kurz (que pensava então em um paralelo com os casos de ataques a tiros em escolas, frequentes nos Estados Unidos desde os anos 1990). Para Kurz, a vontade cega de destruição do outro e a disponibilidade suicida de destruição de si andavam de mãos dadas, sendo as consequências extremas do tipo de subjetividade produzido por uma sociedade capitalista. Ele se colocava assim no esteio da filósofa Hanna Arendt, que havia identificado na modernidade um processo paulatino de “perda do eu”, um enfraquecimento do instinto de conservação que decorria da percepção de que todos somos constantemente substituíveis (notadamente no mundo do trabalho). Mas, com o avanço do neoliberalismo e sua ideologia de autoempreendedorismo, Kurz notara que esse esquecimento de si era completado pelo desconhecimento completo do outro, compondo o que chamou de “subjetividade concorrencial totalitária”. A predisposição ao aniquilamento do outro e à destruição de si não seriam mais do que os reversos patológicos dessa subjetividade concorrencial. O tempo parece ter dado razão ainda maior ao teórico. Cada vez mais levado a cabo por indivíduos desgarrados de inserções coletivas e incentivados à livre ação, o terrorismo ao estilo “faça você mesmo” aparece hoje como um revés perverso dessa cultura.

GABRIEL ZACARIAS, HISTORIADOR, É DOUTOR EM ESTUDOS CULTURAIS PELAS UNIVERSIDADES DE PERPIGNAN E DE BÉRGAMO, E PESQUISADOR DE PÓS-DOUTORADO PELA USP E PELA ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES EN SCIENCES SOCIALES, DE PARIS