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Tormento

Nelson luta contra o que considera ‘covardia’ sua e busca determinação para encerrar o sofrimento de Neusa - e o de si próprio

Por Vitor Hugo Brandalise
Atualização:

No domingo passado, o Aliás publicou a primeira parte da história real de Nelson e Neusa Golla, um casal de São Paulo que, depois de 54 anos juntos, se viram desafiados pelos obstáculos da velhice. Seriamente debilitada por dois AVCs, Neusa estava presa à cama de uma casa de repouso. Nelson, que a visitava todos os dias, pensou numa solução para aquele sofrimento: matar a mulher e a si próprio com uma bomba caseira. Esta é a segunda parte da reportagem, cujo desfecho será publicado no domingo que vem.

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Nelson se despediu do filho Junior com um aceno de mão e um insuspeito “falou” naquele sábado, véspera do dia em que decidiu morrer. Era 27 de setembro de 2014, por volta das dez ou onze da noite, segundo o caçula me contou tempos depois, relembrando o que aconteceu. Nos últimos dias, Nelson seguira a rotina de sempre: às três da tarde, visitava Neusa na clínica de repouso, ficava pouco tempo, porque já não aguentava mais, e logo voltava para casa. Havia um único detalhe, uma ligeira modificação nos seus hábitos que, naquele momento, foi ignorada. Antes de ir à clínica, ele costumava telefonar aos netos Giovanni, de 20 anos, e Bruno, de 17. O celular tocava sempre por volta das duas e meia.

- E aí, vocês vão? Estou saindo de casa.

Nelson não tinha paciência para esperar e, se os netos não estivessem na frente do prédio onde viviam - também na Vila Prudente, zona leste de São Paulo -, ele seguia para a clínica. Desta vez, porém, ele não telefonou. Para ser exato (depois eles se esforçariam para relembrar em detalhes), o avô não havia ligado nos últimos três dias: nem quinta, nem sexta, nem sábado. Os jovens estranharam, mas acreditaram que ele esquecera e se ocuparam de outros afazeres. As visitas à avó eram, afinal, tão sofridas, ela já não falava e eles saíam de lá todos tão cabisbaixos...

Na velhice, o casal pôde viajar, como no passeio a Caldas Novas (GO). ‘Conhecer o Brasil’ era um dos sonhos de Neusa Foto: ARQUIVO PESSOAL

O avô não telefonara porque preferia estar sozinho com Neusa naqueles dias. Vestia sempre uma mesma calça folgada e ninguém notou o que levava nos bolsos. Três dias haviam se passado e ele ainda não tivera coragem de concretizar o plano de acabar com a vida da mulher e com a dele. Martirizava-se, incapaz de finalmente decidir.

Agora era sábado e Nelson estava só em casa, assistindo a uma reprise de futebol na TV, afundado na poltrona do papai. Neusa quase não levantava dessa poltrona antes de ser internada na clínica Novo Lar. Desde que ela caíra doente, quatro anos antes, Nelson fizera o possível para aguentar firme - visitava-a diariamente, fosse Natal ou dia de jogo do São Paulo, o seu time. Mas era cada vez mais difícil. Desesperava-se por não mais aguentar meia hora ao lado da mulher com quem passou a vida. Naquele sábado, Nelson adormeceu na poltrona, já de madrugada.

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Por ser o único filho que vivia com os pais, Junior acompanhou de perto as reações de Nelson à decaída da mãe. O caçula estranhou quando, em uma noite de julho, o pai começou a reunir seus pertences em caixas de papelão. Livros de autoajuda, fitas K7 com programas de rádio (Nelson gravava para treinar locução), algumas roupas.

- Ué, pai, vai viajar? Vai se mudar?

Nelson respondeu que doaria tudo, pois “não precisava mais de tralhas”. Alguns dias depois, ele pediu a Junior que guardasse R$ 5 mil que retirara do banco. Ofereceu também um relógio de pulso, com o qual o caçula brincava quando criança. Junior atribuiu o gesto à depressão que crescia no pai e aceitou o presente sem questionar.

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Neusa Maria Golla foi internada na Novo Lar em 17 de dezembro de 2013, segundo os registros da polícia. Ela ocupou um quarto nos fundos da casa, com uma só cama. Passava o dia vendo TV, calada. A Nelson agradava o fato de estar só com a mulher, em um quarto fechado, sem ninguém gritando ou falando sozinho. Parecia-lhe um bom lugar para a esposa se recuperar. Mesmo que não comentasse, no início, ele mantinha intactas as esperanças de melhora.

Nelson esforçava-se para “incentivar a cabeça da mulher”, como ele dizia. Inicialmente, ainda em casa, faziam palavras cruzadas. Mas agora, na clínica, ela mal podia falar, quanto mais escrever. Nelson buscava outras saídas. “Vamos, Neusa, fala ‘aaa’! Agora ‘bê’. Isso!”, ele dizia, numa tentativa de estimulá-la. Contava de 1 a 30, e Neusa repetia, com dificuldade - soprava as palavras para fora da boca, com um biquinho. Como recompensa, Nelson distribuía carinhos. Dava beijos na testa, passava a mão nos cabelos. Para poder acariciá-la, mexia o ombro todo, pois seus movimentos também eram limitados. Às vezes, atingia a mulher com “uma mãozada na cara” - como os netos descreveram. Neusa se assustava e sorria, resignada. O marido fazia o que podia com aquele braço ruim.

Apesar dos esforços, a depressão não dava trégua e as sequelas do AVC pioraram. O braço direito, atrofiado, não se recuperava, e a perna definhara. Ela fazia fisioterapia, mas pouco adiantava. Em uma noite de junho de 2014, ela sofreu um segundo AVC, que comprometeu a alimentação e a fala. Foi transferida para o quarto número 03, reservado às pacientes mais debilitadas. Ela gemia o tempo todo, queixava-se de dores nas pernas e no pescoço. Em pouco tempo, perdeu 10 quilos.

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“Ela tinha uma tristeza tão grande que eu pensei que nada adiantaria. Já tive depressão e não tem jeito: ou você se ajuda, ou não vai levantar”, disse-me a dona da clínica, Luciane Teodoro. Neusa se comunicava por resmungos. Para um lado e para o outro ela mexia o pescoço, que a essa altura estava endurecendo. Se precisava das enfermeiras, gritava. Às vezes, conseguia falar.

- Ca-sa! Ca-sa! - repetia.

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Nelson nunca deixou de levar guloseimas para alegrar a mulher. Os preferidos, quando ela podia mastigar, eram chocolate diet e biscoitos de aveia e mel. Ela gostava de salgados gordurosos, que não figuravam na austera dieta da clínica. Nelson levava escondido esfihas de queijo. “Não é hora de a sua mãe parar de comer o que gosta”, disse ao filho mais velho, Nilson. Satisfazia-se ao pensar que podia fazer o que quisesse da vida e não seria agora, aos 74 anos, que mudaria esse hábito.

Nelson visitava Neusa todos os dias Foto: ARQUIVO PESSOAL

Quando Neusa começou a recusar todo tipo de comida, a enfermeira Luciane chamou a filha, Nilma (outro nome com “n”, como eles gostavam). “Vai ter que passar uma sonda, só assim ela poderá ficar aqui”, disse a enfermeira. Nilma perguntou se aquilo era o melhor para a mãe (“era o que eles sempre perguntavam, se era para o bem dela”, disse-me Luciane depois) e aceitou que a sonda fosse colocada.

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Agora Nelson sentia que oficialmente não havia mais nada que ele pudesse fazer pela mulher. Não poderia mais cozinhar para ela e nem oferecer guloseimas, um refresco na dura rotina. Um dia, uma auxiliar de enfermagem viu que ele dava água à esposa com um canudo e o repreendeu. Ela usava sonda, ele não podia mais fazer aquilo. Se quisesse, podia molhar os lábios dela com uma gaze úmida. Só isso. Foi quando Nelson adquiriu, em uma farmácia, uma pequena bisnaga plástica, com a qual daria água e água de coco à mulher às escondidas - desse breve alívio ele não abriria mão.

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Quando as enfermeiras saíam de perto, Nelson apertava a bisnaga (um recipiente parecido com o de um colírio, só que maior) e espirrava o líquido na boca da mulher. “Saem umas gotinhas só, não dá nem pra engasgar com aquilo”, ele dizia. Pouco tempo depois, a língua da mulher definhara, ficou como que enrolada para trás. Não mexia mais. “Puta que o pariu. Ela não consegue mais falar nada! Ninguém entende o que ela quer”, disse a Nilson. “Olha a situação da sua mãe. Ela fica sofrendo, só isso.” Nelson não entendia o motivo de a esposa ter decaído assim. Ele estava sempre ao lado dela, tentou ajudar tanto, como ela pôde apenas piorar? Em uma tarde de agosto de 2014, ele se aproximou do leito da mulher e disse:

- Temos de dar um jeito de ir embora, você e eu.

A vida à que ele se acostumara não existia mais. Antes, havia a rotina em casa, as refeições que preparava sob orientação de Neusa, os cuidados que dava, mesmo que às vezes perdesse a paciência. Antes havia as viagens, os passeios a Caldas Novas (GO) ou ao Nordeste. Houve a viagem a Pesqueira (PE), cidade onde Neusa nasceu e de onde saíra adolescente. Visitaram a fábrica de doces onde ela trabalhou, a fonte de onde tirava baldes d’água, a igreja onde foi batizada. Ao retornar, ela disse ter “nascido de novo”. Na saída de uma das visitas na clínica, Nelson falou disso a uma enfermeira. Inesperadamente, deu nela um longo abraço.

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A dona da Novo Lar deu um recado às suas três auxiliares: que dispensassem mais cuidados à dona Neusa. “A gente percebe quando o paciente vai se entregando. Então falei para dar mais conforto a ela”, disse-me Luciane, depois de tudo. “Deus é que é dono da vida e da morte. Mas eu trabalho com idosos há 20 anos e via que era questão de tempo. Eu falei isso também à delegada.”

No dia em que conversamos na clínica, Luciane disse que procurava ficar próxima de Neusa, pois sabia o que era sofrer de depressão. Neusa tomava Sertralina, mas claramente não era o bastante. A enfermeira tentava animá-la. “Você tem de reagir, Neusa. Até seus netos vêm visitar! Você não tem nada grave, não tem câncer, cadê a força de vontade?” Nessa fase, Neusa apenas chorava. Um dia, quando ela já usava a sonda, a enfermeira foi mais longe. “Essa situação não é pra sempre, Neusa. Você não tem mais vontade de viver?” Neusa balançou a cabeça que não, para um lado e para o outro.

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Era domingo, 28 de setembro de 2014, dia de equipe reduzida na Novo Lar. A Rua Lótus, uma travessa da Avenida Luís Inácio de Anhaia Melo, estava em silêncio. Não se ouvia nem mesmo o bate-estacas dos operários que durante a semana trabalhavam nas obras de um monotrilho ali perto. Luciane chegou à clínica ao meio dia.

Após ajudar a dar banho em Neusa, ela trouxe a camisola branca com lacinhos rosados na gola com que a vestiria. “Cheguei toda bagunceira, como sempre faço pra animar os mais tristinhos”, contou-me. Depois do banho, a enfermeira comprou uma fatia de lasanha e um bife de alcatra - seu almoço de domingo, que comeria na clínica.

A dois quilômetros dali, Nelson já havia recebido um telefonema de Junior, avisando que não chegariam a tempo para almoçar. Decidiu, então, caminhar no parque, um lugar que apreciava. Ele já tinha tudo preparado. Tentava reunir forças, mas não tinha certeza se conseguiria. Irritava-se por sentir-se um covarde. O jogo de futebol de várzea ainda estava no primeiro tempo quando Nelson levantou-se do banco e, com um aceno cordial e o caminhar um pouco trôpego, despediu-se dos companheiros de parque.

- Tchau! Vou ali com a minha velha.

***

Havia três dias, Nelson levava no bolso o explosivo que preparara com a pólvora de rojões comprados perto de casa e um tubo de aço que encontrara na oficina. Ele considerou usar veneno, mas escolheu um método mais à mão. Faltava-lhe apenas um pouco de coragem. Em comparação com os outros dias em que levara a bomba à casa de repouso -?a quinta, a sexta e o sábado -, Nelson não sentia nada de diferente. Isso lhe causava raiva e incompreensão. O que faltava para conseguir fazer aquilo tudo terminar?

Ele ultrapassou o portão verde da Novo Lar e resmungou alguma coisa com Michelli, a auxiliar de enfermagem que o barrara no portão. Depois, seguiu direto para o quarto 03, sem falar com Luciane, que almoçava no pátio. Nelson permaneceu ao lado do leito da mulher, como tantas vezes fizera ao longo dos últimos nove meses. Neusa apenas o observava.

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A promessa que fez de tirá-la dali, a angústia de pensar que ela só pioraria, o sofrimento que ultrapassara os seus limites. Nelson estava atormentado e queria tomar uma decisão. Ele colocou a mão no bolso da calça e tirou dali a bisnaga com água de coco?- proporcionaria, pelo menos, algum alívio à mulher.

O que aconteceu depois foi “rápido como um relâmpago”, para usar o palavreado de Nelson. Foi incontrolável. Ele esguichava o líquido para dentro da boca da mulher, quando Michelli entrou no quarto. Ela queria trocar as fraldas da paciente da cama ao lado, Almerinda. Ao notar o que Nelson fazia, a auxiliar se irritou.

- Que que é isso, seu Nelson? Não pode dar nada, ela pode pegar pneumonia! -, disse a funcionária - Ela toma água pela sonda, o senhor me dá esse frasco que vou levar pra Luciane.

- É só água de coco, menina! - defendeu-se Nelson - Sonda! Experimenta jogar água no teu pé pra ver se mata a sede, tem que dar na boca! E são só umas gotinhas? - ele prosseguiu.

Mas a essa altura Michelli já lhe havia tomado o frasco e saía porta afora, batendo o pé até o pátio.

- Luciane, olha o estado disso aqui que ele está dando pra dona Neusa. Um frasco todo sujo!

Nelson ficou sozinho no quarto com Neusa. A esposa apenas o fitava, como fazia desde que parara de falar. Nelson, então, pensou na mãe. Veio-lhe à mente a velha passagem familiar em que dona Maria dizia a ele: “Precisa dar água pras crianças, Nelson, porque elas não pedem. Elas têm sede também e, de vez em quando, tem que dar uma aguinha para elas…”. Lembrar disso lhe causou tristeza e raiva. “Porra, não vou poder mais nem dar água pra minha mulher, puta que o pariu!” E, então, ele sentiu. Era a hora.

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Nelson tirou do bolso da calça folgada o tubo de aço cheio de pólvora. Acomodou-o sob o braço esquerdo de Neusa, perto de onde julgou ficar o coração. Pegou a caixa de fósforos e acendeu o pavio. Deitou-se em cima da esposa. Abraçou-a como pôde, com o braço bom. Escutou o fogo consumindo o rastilho. Disse suas últimas palavras à mulher: “Pronto, agora nós vamos embora”. Fechou os olhos e esperou.

NA WEB Leia a íntegra desta reportagem, que está sendo publicada em conjunto com o site Brio

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