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Tradutora leva o espelho opaco de 'Finnegans Wake' para o português

Obra de Dirce Waltrick do Amarante se soma aos esforços de Donaldo Schüller, irmãos Campos e Caetano Galindo

Por Wilson Alves-Bezerra
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Em 1923, o irlandês James Joyce (1882-1941) mal acabara de publicar Ulisses – “um romance para acabar com todos os romances” (Harry Levin) – e já se pôs a escrever aquele que viria a ser um livro ainda mais radical: um longo poema em prosa composto por fragmentos de 64 idiomas sobre a base do inglês. No processo da escrita, que duraria até 1939, iria se deparar com a mal reconhecida esquizofrenia de sua filha Lucia, a degradação irreversível de sua visão, questionamentos sobre sua própria sanidade e, claro, o livro que, para ele, ocuparia os universitários pelos próximos 400 anos: Finnegans Wake. Em que pese o custo pessoal, talvez não previsto, a faina literária de Joyce consistia em algo engenhoso: escrever em língua inglesa de um modo tal que a língua inglesa deixasse de existir (Phillippe Sollers). De forma que, além de monumento literário, o livro passou a ser objeto de espanto: “É possível ler FW? É possível traduzir FW? (...) Como foi possível escrever FW?”, perguntou-se certa vez João Alexandre Barbosa.

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James Joyce e Sylvia Beach na entrada da livraria Shakespeare and Co. Foto: Mondadori Portfolio

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Passados 80 anos de sua publicação, há duas traduções no Brasil: a precursora, que consiste em fragmentos traduzidos por Augusto e Haroldo de Campos, entre 1957 e 2001; a de 1999, do destemido Donaldo Schüler, que produziu Finnicius Revém, a tradução integral, publicada em cinco volumes bilíngues fartamente anotados. É a tal série que vem se somar o trabalho de Dirce Waltrick do Amarante, com seu Finnegans Wake (Por um Fio). O paranaense Caetano Galindo está trabalhando também numa tradução integral da obra.

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Ora, podemos nos perguntar, como o supostamente ilegível pode gerar tantas traduções? Traduzir, como disse o primeiro tradutor argentino de Joyce, Salas Subirat, “é o modo mais atento de ler”. Traduzir o Finnegans, portanto, é um renovado ato de leitura, decifração e criação. Um procedimento corriqueiro no livro é o que Sollers chamou de homofonia translinguística – que consiste na possibilidade de que uma mesma cadeia significante possa se decompor e recompor em diferentes línguas: a frase aparentemente inglesa “Who ails tongue coddeau aspace of dumbillsilly?”, por exemplo, pode ser lida, em voz alta, como francesa: “Où est ton cadeau, espèce d’imbécile?”, equivalendo a “Onde está seu presente, seu imbecil?”

Pode-se pensar no Finnegans como um jogo em que as regras não estão dadas e vão sendo descobertas – ou inventadas – por cada leitor/tradutor. Os irmãos Campos, por exemplo, queriam a intensidade da obra, não sua totalidade, e traduziram 22 trechos que teriam, “em português, um estatuto equivalente à voltagem de invenção e criatividade do original”. O gaúcho Donaldo Schüler foi extensivo, com o preço de, por vezes, ter de abrir mão das ambiguidades. Assim, o trecho acima citado, transformou-se, para Schüler, em: “Kedê kadô, bobinha do meu xodó?”

Quanto à tradução de Waltrick, pode-se alinhá-la àquelas que querem levar pela mão o novo leitor de Joyce, como a de Schüler. Como ela mesma diz em seu posfácio, citando Francesco Careri: “Acredito que o Finnegans Wake precisa ser ‘preenchido de significados’. E foi o que busquei em minha caminhada por ele”. Para tanto, oferece um fio narrativo: seleciona e traduz trechos que considera chave e os apresenta intercalados por explicações. Embora Amarante se aproxime dos Campos na opção pelo fragmento, opõe-se no que se refere à motivação: ela quer preservar a história, o argumento, o fio; os irmãos concretistas, a poesia.

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Estamos pois, com Amarante, diante de uma aproximação didática a Joyce, cujos fragmentos do Finnegans, trazidos em espelho, convidam o leitor a uma leitura in natura. O volume da Iluminuras termina com o interessante posfácio de Amarante, no qual conta as intrigantes reconstruções artísticas do livro, perpetradas por artistas como John Cage e Ana Hatherly, que criaram suas próprias versões artísticas do Finnegans.

O grande mérito do trabalho de Amarante – na teoria e na prática – é mostrar a multiplicidade de formas de se aproximar ao texto de Joyce, esse espelho que produz sempre um rastro, um resto, a quem o encara: um produto singular que se parece um pouco a ele mesmo e muito à escrita de seus tradutores. Um espelho, enfim, que “opaco, não oferece guarida nem o brilho fálico da significação” (Claudia Lemos).

*Wilson Alves-Bezerra é escritor, tradutor e professor do departamento de letras da Ufscar 

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