Transmidiática

Todos os lances, os do passado e os que estão por vir, da mudança de sexo do atleta Bruce Jenner

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Por Kathleen Parker
Atualização:

Não foi bem um “trate-me por Ishmael”, célebre início de Moby Dick. Mas o “trate-me por Caitlyn” também foi um começo e tanto.

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Difícil encontrar um canal de notícias que não exaltasse Bruce Jenner por sua corajosa metamorfose transgênero ou admirando seu visual “exuberante”. Momentos após a divulgação da capa de Vanity Fair de julho com Caitlyn Jenner, o Twitter se desdobrava em considerações sobre como ela ficou parecida com, vejam só, Jessica Lange!

No momento mais brilhante do dia, Lange, quando solicitada por telefone para comentar a repercussão no Twitter, disse: “O que isso significa?” Depois de esclarecida, Lange, que não usa a internet, disse, graciosamente: “Mas que maravilha”.

 Foto: Annie Leibovitz's/VANITY FAIR

Antes de prosseguir, façamos uma pausa para estipular que desejamos a Jenner o melhor em sua nova vida. Deve ser terrivelmente difícil não se sentir em casa em seu próprio físico. Obviamente, ninguém passaria pelo processo excruciante de se tornar outro se essa não fosse uma situação devastadora que sentisse precisar corrigir.

O que me interessa aqui é o tratamento cultural, midiático, do caso Jenner - e o pressuposto de que precisamos todos fazer parte disso. De uma entrevista a Diane Sawyer em abril para a capa de Vanity Fair à cobertura vertiginosa da mídia, a sensação é que Caitlyn Jenner - e só incidentalmente o transgenerismo - é a grande novidade.

Nós viemos a aceitar que cada momento precisa de uma celebridade, e Jenner é a autonomeada garota modelo da comunidade transgênero. Mas será Jenner, de fato, a melhor face de uma experiência como essa?

Embora muitos lembrem de Jenner como medalhista de ouro no decatlo olímpico de 1976, ele é conhecido pelos mais jovens como o “pai” no reality show Keeping Up with the Kardashians. Não posso falar do programa, porque nunca o vi, mas poucos escapariam da exposição ao nome Kardashian e da filha mais famosa da família, Kim, que ganhou notoriedade graças a uma fita erótica e a um traseiro descomunal. Curto e grosso, o ex-Bruce e hoje Caitlyn tem ficado à disposição da mídia durante boa parte da vida. Será apropriado elevar Jenner a alturas heroicas, quando muitos transgêneros travam suas batalhas em privado e, de fato, corajosamente?

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Caitlyn, como Bruce, parece precisar do aplauso da audiência tanto quanto precisa da própria transformação, a despeito de seus protestos em contrário em Vanity Fair. Isso não quer dizer que a identidade transgênero de Jenner não seja genuína. À medida que aprendemos mais sobre questões de transgêneros - e presumivelmente a educação é a intenção mais nobre que move a atenção da mídia -, fica mais difícil ignorar essas pessoas ou negar-lhes proteções iguais nos termos da lei.

Mas eu aprendi mais sobre indivíduos transgêneros com a terna poesia de Sue Ellen Thompson do que com exposições em revistas e na TV. Em sua última coletânea, They, Thompson escreve amorosamente sobre a jornada de sua filha transgênero e os desafios que coloca para a família.

Em contraste, ver Jenner produzida como pin-up dos anos 40 - de cabelos longos e corpete - parece zombar de sua nova feminilidade, bem como da dignidade humana que as mudanças supostamente inspiram. A fotógrafa Annie Leibowitz talvez tenha escolhido essa representação por razões irônicas. A feminilidade exagerada pode ser seu comentário ferino, como alguém que renegou tais adornos. Ou talvez, dada a preferência de Jenner por mulheres quando era um homem casado (ver Kardashians), o modelo hiperfeminino foi escolhido mais como representação maliciosa do que pela caricatura que parece ser.

Tudo isso sugere um trabalho psicológico a ser feito, para o qual Jenner merece privacidade e não espetáculo. Ela afirmou que, com a capa de Vanity Fair, está “finalmente livre”. Seria ótimo se isso valesse para todos nós, mas, infelizmente... Um novo reality show chamado E! exibindo o progresso de Jenner como mulher está em preparação. 

/ TRADUÇÃO DE CELSO PACIORN

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