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Um paroquiano rebelde

Hugo Carvana, o malandro genial, viveu e morreu teimando em passar o País a limpo

Por Elizabeth Carvalho
Atualização:
Criador sem mordomia. Filmes de Hugo tinham a marca da transgressão Foto: DIVULGAÇÃO

Num dia gélido de dezembro em Paris, Hugo Carvana perdeu o ticket de volta de metrô e me ligou atônito, porque não tinha dinheiro para comprar outro. Contei os meus e fui resgatá-lo. Era hora de almoço, e a agência de viagens da Varig nos Champs Elysées havia fechado as portas logo depois que ele me pedira socorro. Ficou um bom tempo me esperando do lado de fora, imóvel, impassível, remoendo sua aversão profunda pelos longos meses frios e escuros com os quais tinha agora que conviver à revelia. Encontrei meu amigo fragilizado e só, quase congelado. 

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A imagem de Carvana na porta da Varig, com seu casaco branco e seus mocassins cariocas de pouca valia para o inverno europeu, foi a primeira lembrança que me assaltou quando desembarquei em Paris no mês passado. Histórias de um tempo remoto, na entrada dos anos 1970, quando as circunstâncias nos levaram a formar uma família ampliada e nos aproximaram para sempre. Eu saía de um ano na Argélia, e Martha Alencar, grande amiga, companheira de profissão e de militância política, escapava do cerco cada vez mais cerrado da repressão da ditadura militar no Brasil. Carregava com ela Pedrinho, um bebê de 5 meses, e um marido em estado de choque, subitamente arrancado de suas raízes, de seu hábitat, de sua vida de ator intérprete da alma mais pura e genuína de um país tropical sobre o qual ele derramava a genialidade de um carioca da gema. Carvana, em Paris, era um peixe fora d’água.

Nesses tempos difíceis, dividíamos todos o espaço de um quarto e sala e Martha Alencar e eu nos revezávamos no balcão de uma feira de comestíveis, vendendo tortinhas de cogumelos. Carvana, sem perspectiva alguma de trabalho, havia criado uma rotina que o levava todas as manhãs a atravessar a cidade de metrô até a agência da Varig, para ler os jornais brasileiros e avaliar os rumos do Brasil nas entrelinhas de uma imprensa mutilada. Voltava sempre excitado, com as baterias recarregadas, esperançoso, a energia renovada.

Carvana nunca foi um cidadão do mundo. Era um paroquiano rebelde, importado da classe média baixa da Tijuca para a boemia irreverente de uma pequena república que levava o nome de Ipanema e não existe mais. Não entendia a vida para além do sol e das cores inigualáveis do Rio de Janeiro e dos bares alegres onde amigos brilhantes como ele todas noites se encontravam para derramar sobre as mesas a magia do que o Brasil tinha de melhor e de mais resistente contra a boçalidade e a truculência de um modelo social perverso, violento e elitista: nossa música incomparável, nosso cinema, nossa poesia, nosso teatro inquieto. Tom Jobim. Chico Buarque. Glauber Rocha. Gil e Caetano. Paulo Pontes. Vianinha. Naquelas noites, o Rio parecia o centro de resistência do mundo e dali irradiava um país libertário e irreverente, a essência da nossa originalidade e do que nos torna únicos, nossa crença inabalável no futuro. 

Carvana era um homem político. Quando voltamos ao Brasil, muito tempo depois da operação resgate na porta da Varig, apostamos na recuperação da história interrompida pelo golpe militar em 1964, ajudando a eleger Leonel Brizola e Darcy Ribeiro nas primeiras eleições diretas para o governo do Rio de Janeiro. Demos os braços a Darcy, um intelectual brilhante, que tanta falta faz hoje para a nossa brasilidade - contagiados pela frase que ele repetia à exaustão, como um mantra - precisávamos, definitivamente, passar o Brasil a limpo. Carvana deixou de lado o cinema e foi dirigir a Fundação de Artes do Rio de Janeiro. Parecia o homem certo no lugar certo. Carvana e Darcy partilhavam o mesmo sentimento apaixonado pelo povo brasileiro e a mesma capacidade de emprestar aos caminhos tortuosos da política do poder um humor incomparável. 

Muitas águas rolaram entre a experiência do exílio em Paris, a do curto período da administração pública e a do Brasil que ele deixa agora para sempre, pobre e endividado, como a maior parte dos conterrâneos. Na última vez que nos vimos, na reta final da campanha que elegeu Dilma Rousseff presidente da República, em 2010, Carvana já estava doente e fisicamente bastante enfraquecido, mas estava lá, no meio da multidão que lotava o teatro onde acontecia um ato público, e outra vez emprestava seu entusiasmo à construção do que acreditava ser um modelo mais igualitário e mais próximo da alma brasileira que ele carregava. 

Carvana era um otimista. Seus filmes não eram exatamente políticos, mas tinham a marca da transgressão. Fazia cinema para a plateia se contorcer de rir e torcer pelo bandido, e a ele concedia sempre um final feliz. Construiu uma galeria de heróis pés de chinelo - loucos, malandros, prostitutos, desempregados, trapaceiros, camelôs -, cavaleiros da batalha pela sobrevivência em luta contra a arrogância do mundo do terno e da gravata, do falso malandro com aparato oficial. Era um criador sem mordomia, sem escritório ou secretária, um artista de fundo de quintal. A ideia de um novo filme invariavelmente se espalhava por todos os cômodos da casa, porque para Carvana fazer cinema era uma atividade doméstica aberta à partilha de tarefas. Com o tempo, a família toda - Martha e seus quatro filhos, e talvez os netos, também - acabaram se tornando peças indispensáveis de suas produções. 

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Apesar de alguns grandes sucessos de bilheteria, Carvana nunca enriqueceu. Passou a vida tapando buracos e gastando mais do que tinha, porque essa continua sendo a regra de quem faz cinema no Brasil. Caiu na metade do caminho de mais um filme, mas foi coerente até o final: com seu charuto e seu copo de uísque, transgrediu enquanto pôde as regras da doença e da morte, e se de pé ainda estivesse continuaria teimando em passar o Brasil a limpo.

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Elizabeth Carvalho é jornalista e correspondente da Globo News em Paris

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