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União sem moral: os crimes contra a humanidade que a Europa vem tolerando

Para acadêmico suíço, o projeto de bloco europeu descambou em uma “paz egoísta”, que ergue muros e tolera crimes contra a humanidade

Por Jamil Chade e GENEBRA
Atualização:

O projeto europeu vive, acima de tudo, uma crise moral e o Brexit é apenas o último sintoma de um mal-estar continental. Para o renomado sociólogo suíço Jean Ziegler, o desencanto da população europeia com Bruxelas não é só obra dos grupos de extrema-direita, mas sim um fracasso da União Europeia em responder às necessidades dos menos favorecidos e a incoerência diante do desafio da imigração. Em entrevista ao Aliás, o acadêmico avalia que Bruxelas construiu uma “paz egoísta”, deixando milhões de fora.

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Em 82 anos de vida, Ziegler coleciona inúmeras obras – e a mesma quantia em polêmicas. Nos anos 1980, ele criou constrangimento em seu país ao publicar A Suíça Acima de Qualquer Suspeita (Paz e Terra), sobre o envolvimento de grandes fortunas do país na exploração dos países mais pobres. Mas, foi em 1990, ao tocar nos bancos, que o sociólogo passou de acadêmico a celebridade internacional. Em A Suíça Lava Mais Branco, ele cruzou uma linha proibida no país e revelou que era a lavagem de dinheiro o que garantia a renda da sociedade suíça.

A vida de Ziegler, em Genebra, também mudou. Num dos países mais seguros do mundo, o sociólogo e sua família passaram a ser protegidos por escolta permanente. Mesmo assim, foi alvo de três ataques.. Seu último livro publicado, Destruição em Massa (Cortez, 2015), denuncia a fome pelo mundo. E a próxima obra, prevista para setembro, aponta para “a hipocrisia no sistema de proteção aos direitos humanos na ONU”. Leia trechos da entrevista.

Um acordo fechado no início do ano pôs entraves à chegada de estrangeiros no bloco europeu. Qual sua avaliação disso?

Há uma regra universal que garante que perseguidos por motivos políticos ou religiosos tenham o direito de atravessar fronteiras e pedir asilo. Ao fechar o acesso à Europa com muros na Macedônia, Hungria e Eslováquia, com a bênção de Bruxelas, o direito ao asilo foi liquidado. A Europa foi fechada. Um Estado sempre pode recusar dar asilo. Mas impedir que seja solicitado é um crime contra a humanidade. E a UE aceitou isso.

Como explicar a atitude, em meio a uma crise de refugiados, deste bloco que diz ter os Direitos Humanos entre seus principais valores?

O problema começa muito antes da chegada dos refugiados. O erro fundamental foi ter aceito às pressas a adesão dos países do Leste Europeu. Essas sociedades mostraram seu lado fascista e teriam de ter ficado fora da UE até passar por uma real reforma interna. Mas a UE os aceitou. Eram as elites comunistas totalitaristas, corruptas, que só mudaram de nome. Não compartilham dos valores democráticos.

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  Foto: Santi Palacios | AP

Como isso atrapalha a máquina europeia?

Desde 1° de julho, é a Eslováquia que preside a UE. Até hoje, ela recebeu apenas 221 refugiados, e com a condição de que fossem cristãos. Para completar, quando a UE fez seu plano de cotas para distribuir os refugiados, foi a Eslováquia que levou o caso aos tribunais tentando derrubá-lo. É mentira quando Bruxelas diz não poder fazer nada contra esse comportamento. Os oito países do Leste Europeu vivem das doações e fundos da UE. Bastaria cortar parte desses recursos, e exigir uma mudança de postura.

Por que Bruxelas não age?

O presidente da Comissão Europeia, Jean Claude Juncker, não tem credibilidade. Ele foi primeiro-ministro de Luxemburgo por sete anos, durante os quais fechou 564 acordos com multinacionais para ajudá-las a evadir impostos de seus países. Ele não tem autoridade moral e assiste passivamente à violação do direito ao asilo. A UE foi criada pela unificação de mercados. Mas sua força sempre foi o valor moral, que agora está sendo liquidado. Durante o Brexit, quem não queria deixar o bloco tinha dificuldades para encontrar argumentos para defender a permanência.

Para onde isso pode levar?

Quando há exemplos de intolerância, fechando fronteiras e subindo muros, abre-se o espectro do fascismo, da xenofobia. Se não houver resistência real, esses grupos vão prosperar.

Por que o maior projeto de paz do século 20 não é mais capaz de convencer os cidadãos a acreditar nele?

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O problema é a credibilidade. A UE é a maior potência econômica do mundo, com PIB de US$ 11 trilhões. São 500 milhões de consumidores e produtores, um poder enorme. Aí escutamos de Bruxelas que o bloco não pode receber 1 milhão de refugiados e nem integrá-los. Se a região mais rica do planeta não os pode integrar, quem pode? Claro que podemos. Mas há uma perda da moral, e essa perda tem enterrado a ligação das instituições com os cidadãos. Por isso não existe uma adesão popular ao projeto europeu, que é baseado em mentiras. A UE nasceu de um projeto de paz depois da Segunda Guerra. Mas se isso é pago hoje com a morte de milhares de iraquianos e sírios, com a austeridade, com a morte de pessoas no Mediterrâneo, é uma paz egoísta. O que ocorre na Europa hoje é, talvez, o começo de sua crise mortal.

Como o sr. avalia o Brexit nesse contexto?

Ele é o sintoma de uma crise muito mais profunda. É a concretização da hostilidade contra Bruxelas. Essa parcela da população não se identifica com a UE porque essa Europa traz desemprego, problemas sociais e cria a desigualdade. As políticas de austeridade promovidas por Bruxelas desde 2008 foram catastróficas ao povo. 50% dos jovens espanhóis não têm emprego. 12% das crianças na Espanha estão abaixo do peso ideal. Se colocarmos à votação a permanência na UE, não seriam apenas os britânicos que deixariam o bloco.

O sr. teme votações similares em outros países?

Nesse momento, sempre que houver votação popular, há risco real de que essas pessoas peçam para sair da UE. Agora, vivemos uma situação absurda em que Bruxelas tentará impedir, a todo custo, que as pessoas sejam consultadas. A única solução para manter o projeto agora é garantindo que o povo seja silenciado? Esse é o absurdo da crise. O mais irônico de tudo é que a juventude é pró-europeia. Existe uma enorme vontade da juventude em fazer a integração funcionar. Mas não nos moldes dessa Europa de hoje.