Vaidade contagiosa

O que parece estar em jogo nas críticas à quarentena para controlar o Ebola é o orgulho dos Médicos Sem Fronteiras

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colunista convidado
Por Lee Siegel
Atualização:
A enfermeira Kaci Hickox dá uma volta de byke no bairro, desafiando a proibição de sair de casa Foto: ASHLEY L. CONTI/REUTERS

Os historiadores analisarão a reação dos Estados Unidos à chegada de um dos vírus mais letais e contagiosos do mundo e coçarão a cabeça. As recomendações, de bom senso, de se pôr em quarentena o pessoal médico que regressou recentemente dos três países mais afetados da África Ocidental são vistas com raiva e ultraje. E as solicitações para que se proíbam viagens da Guiné, Libéria e Serra Leoa, onde milhares de pessoas são semanalmente contaminadas pela doença, são denunciadas como forma de discriminação.

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Enquanto escrevo, a enfermeira americana que voltou da Guiné, onde cuidou de pacientes com Ebola, persiste em desafiar as ordens de seu Estado, o Missouri, de que fique em casa por mais uma semana e meia, período no qual as evidências científicas dirão se ela foi ou não infectada pelo vírus, uma vez que foi exposta a ele. Quinta-feira, numa atitude desafiadora, ela deu uma volta de bicicleta pelo bairro onde mora.

A enfermeira, Kaci Hickox, chegou na semana retrasada ao aeroporto de Newark, New Jersey, com febre. O governador do Estado, Chris Christie, imediatamente determinou que ela permanecesse de quarentena numa espécie de tenda; ela então contratou um dos mais competentes advogados especialistas em liberdades civis do país e escreveu um artigo para os jornais denunciando Christie por “violar”, conforme afirmou, seus “direitos humanos”. Kaci apareceu na primeira página do New York Times sentada na tenda, sorrindo para a câmera.

Christie, assim como o governador Andrew Como, de Nova York, o governador Dannel Malloy, de Connecticut, e governadores de vários outros Estados, decidiu agora pela quarentena de médicos e enfermeiros que regressem da África Ocidental por causa do comportamento de um médico de Nova York, Craig Spencer, que, pouco antes da chegada da enfermeira Kaci a Newark, também regressara da África Ocidental, onde tratou de pacientes de Ebola. A organização Médicos Sem Fronteiras, para a qual Spencer e Kaci trabalham, aconselha seu pessoal médico que retorna de países afetados pela epidemia a se “automonitorar” tomando a temperatura duas vezes ao dia. Fora isso, a organização permite que seus trabalhadores viajem sem nenhuma restrição. Spencer andou por Nova York, comeu em restaurantes, tomou táxi, mesmo depois que começou a sentir cansaço. No fim da semana durante a qual ficou andando pela cidade, apresentou os sintomas do Ebola e imediatamente se internou num hospital. Um grande número de “detetives de doença” foi imediatamente despachado por toda a cidade para tentar encontrar as dezenas, talvez mesmo centenas de pessoas que Spencer pode ter infectado. A mesma operação foi realizada depois que uma enfermeira, Amber Vinson, que cuidara de um paciente de Ebola em Dallas, Texas, tomou um avião para Cleveland e andou pela cidade. Antes, ela havia procurado o Centro de Controle de Doenças, que lhe deu permissão de ir e voltar de avião de Cleveland. Antes de embarcar de volta para Dallas, ela começou a apresentar os sintomas do Ebola.

A família de Amber contratou advogados para cuidar do caso, que, no entanto quase não originou críticas e resistência. Com Spencer foi diferente. A organização Médicos Sem Fronteiras é uma ONG poderosa, goza de grande prestígio e tem inúmeros defensores. A simples sugestão de que Spencer possa ter sido irresponsável ou mesmo incauto ao se deslocar pela cidade provocou zombarias e defesas iradas do médico. Ele é “herói” e “altruísta”, proclamou The New York Times. Pessoas como Spencer, gritaram seus defensores, não deveriam ser alvo de críticas. A sociedade deveria mostrar-se agradecida e reverenciá-lo. Mesmo porque, afirmou-se, Spencer agora estava cooperando amplamente e com sua costumeira abnegação com as autoridades. 

Posteriormente, ficamos sabendo que o heroico e abnegado médico mentiu para as autoridades quando perguntaram se ele havia saído do apartamento ou usado os transportes públicos. E continuou mentindo até que a polícia o interrogou. A essa altura, decidiu fornecer um relato detalhado de seus movimentos pela cidade. Nenhum jornal, com exceção dos mais conservadores, noticiou essa parte da história. 

Não é difícil entender por que a atitude das pessoas em relação ao Ebola foi tão incoerente em lugar de expressar união e solidariedade, como costuma ocorrer numa crise. Em grande parte, ela reflete o profundo abismo político, social e cultural em que se encontra este país. A distância que separa os conservadores, cuja prioridade é o interesse nacional, dos liberais, que veneram os direitos individuais acima de tudo, persiste há décadas. Essa situação é agravada pelo ódio da direita com que Obama se defronta desde sua eleição. O fato de que a crise do Ebola tenha suas raízes na África, onde o pai do presidente americano nasceu, além do fato de os ataques a Obama frequentemente ridicularizarem suas origens africanas, distorce as emoções despertadas pela doença, acirrando uma batalha simbólica entre as elites liberais (em sua maioria, brancas) que defendem seu presidente negro e todos os outros.

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Entretanto, vistos à luz clara e serena da razão, os argumentos contrários à quarentena e às proibições das viagens não têm o menor sentido.

Os que argumentam contra a proibição de viagens e citam como exemplos a Nigéria e o Senegal, livres de Ebola, não levam em conta o fato de que a principal linha aérea da Nigéria se recusa a transportar passageiros dos países afetados e o Senegal fechou suas fronteiras. O que se informa é que médicos e enfermeiras que põem voluntariamente em risco suas vidas para tratar os pacientes de Ebola na África Ocidental se sentirão desencorajados a retornar pela perspectiva de uma quarentena de três semanas quando regressarem - proposta que constitui ao mesmo tempo um absurdo e um insulto a médicos e enfermeiras. Qualquer pessoa que esteja disposta a arriscar a saúde e a vida na África Ocidental não se importará com o inconveniente de uma quarentena de três semanas passada em sua residência, prazo máximo para a incubação da doença. O que realmente parece estar em jogo é o orgulho da própria organização Médicos Sem Fronteiras.

Afirma-se que a quarentena desencadeará o pânico, quando é precisamente a atitude oposta, de permitir que pessoas possivelmente infectadas tenham toda a liberdade de se movimentar, que causará insegurança. Diz-se ainda que a automonitoração atende tanto às preocupações do indivíduo quanto da sociedade. No entanto, assim que uma pessoa que faz seu próprio controle se revela infectada pelo vírus do Ebola, os detetives da doença procuram desesperadamente entrar em contato com centenas de pessoas; se pessoa sob suspeita permanecesse em quarentena, não haveria necessidade das buscas. A automonitoração é na realidade uma espécie de roleta-russa.

A ciência, afirma-se, estabeleceu que uma pessoa não contagia outra com a doença a não ser que apresente os sintomas - e, mesmo assim, o Ebola só pode ser transmitido pelos fluidos corporais: sangue, suor, sêmen, muco, lágrimas. Leva tempo para que o vírus se desenvolva a ponto de se tornar contagioso, argumenta-se, o que significa que qualquer um que perceba estar adoecendo terá muito tempo para se isolar num hospital antes de infectar os outros.

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Como ocorre frequentemente com argumentos de inspiração liberal, esses não levam em conta uma realidade fundamental: a natureza humana. Posso imaginar dezenas de situações em que uma pessoa procedente da África Ocidental poderia, apesar de suas boas intenções, contagiar outras. Por exemplo, se ela está longe de casa sem um carro à disposição, percebe que está ficando cada vez mais doente e precisa pegar um transporte público para chegar em casa ou procurar um hospital. Ela então se apoia num poste ou num corrimão do metrô com a mão suada e pronto! A doença começa a se espalhar. Ou alguém que pegue gripe enquanto incuba o Ebola e, à medida que o vírus vai se fortalecendo, o infectado acha que os sintomas são de gripe e anda pela cidade tossindo, espirrando e tocando superfícies e pessoas.

Considerando a natureza humana em toda sua variedade, há indivíduos, até médicos e enfermeiras, que agirão de maneira irresponsável mesmo sabendo que estão com os sintomas da doença; por exemplo, andando numa rua movimentada, compartilhando comida, fazendo sexo. De fato, as pessoas que trabalham para os Médicos Sem Fronteiras e organizações semelhantes, como ouvi dizer inúmeras vezes na televisão, estão realizando a obra de Deus, sacrificando-se, exercendo um trabalho nobre. Mas elas não são privadas de egoísmo. São seres humanos, com egos humanos. Algumas, por realizarem a obra de Deus, acreditam ser o próprio Deus. Seus egos são enormes e inatacáveis e muitas vezes estão convencidas de que, por verem frequentemente pessoas sofrendo de maneiras inimagináveis, podem julgar aqueles que fazem parte de sociedades mais protegidas como excessivamente confiantes e de algum modo desprezíveis. O fato de Craig Spencer mentir a respeito de seus movimentos foi uma atitude de desprezo. O passeio de bicicleta de Kaci Hickox é uma atitude de desprezo. Evidentemente, por causa de sua ação humanitária ambos se consideram eticamente seres maravilhosos - e são de fato -, portanto, acima da moral comum.

As únicas medidas racionais e humanitárias da sociedade são as que produzem o maior bem prejudicando o menor número de pessoas. Uma maneira de avaliar essa qualidade é perguntar qual poderia ser a pior consequência de determinada medida. A pior consequência da quarentena ou da proibição das viagens é um transtorno. A pior consequência por não se exigir que pessoas potencialmente afetadas pelo Ebola sejam isoladas ou proibidas de entrar no país é uma enorme epidemia de Ebola.

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É extremamente improvável que o Ebola possa provocar uma epidemia nos Estados Unidos, dada a evolução da tecnologia e a superioridade da medicina deste país. Mas é totalmente incompreensível que pessoas que costumam pensar de maneira correta estejam dispostas a sacrificar uma única vida, sem falar na ordem pública, em nome de um padrão de direitos individuais completamente distante da realidade. Pelo menos, sua vaidade moral, embora contagiosa, poderá ser tratada. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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Lee Siegel, escritor e crítico cultural americano, é colaborador do NYT, The New Yorker e The Nation. Autor de Você Está Falando Sério? (Panda Books)

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