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Vambora?

Indícios de água (e quem sabe vida) em Marte reanimam planos e desejos de colonizar o planeta. Mas pioneiros poderiam durar só 68 dias

Por André de Oliveira
Atualização:

O homem pisará em solo marciano em um futuro próximo. Isso é fato. Ou conversa de doido? O negócio é que depois do anúncio dessa semana, em que a Nasa revelou indícios da existência de água líquida salgada em Marte, teve muita gente que andou debatendo a ideia de explorar o planeta vermelho. Teve até coluna de opinião no New York Times, assinada pelo filósofo e escritor Ed Regis explicando, por A mais B, porque a gente não deve ir para lá. Segundo ele, a começar pela viagem, de até 9 meses, o quadro é desanimador, prometendo momentos algo escatológicos: “Lágrimas, suor, urina e talvez até detritos sólidos serão reciclados para consumo”. Não vale à pena, né? Talvez para o Ed, mas não é assim que todo mundo pensa. Um crítico rebateu dizendo que, se a humanidade tivesse seguido a linha de raciocínio dele, os europeus nunca teriam descoberto a América. 

Em Porto Velho, lá no Rondônia, o anúncio da Nasa não causou tanto efeito. Para a Sandra Maria Feliciano, escritora de sci-fi, advogada e ex-professora de ensino médio, água no planeta vermelho já era um fato quase consumado. Apesar de não ser cientista, ela anda muito a par das descobertas do além-Terra e, há quem diga, tem vivido literalmente com a cabeça no mundo - pra lá - da lua. Por isso, assim como a comunidade científica, a Sandra recebeu o anúncio da agência espacial americana sem grandes surpresas. Se a confirmação alterou alguma coisa na sua rotina, foi dar um up de ânimo nas pesquisas que ela vem desenvolvendo com seres estranhos em aquários. Ao lado das branchonetas - um bichinho parecido com um camarão e que serve de ração nas criações de peixe de água doce do nordeste brasileiro -, sua atenção está voltada para encontrar um uma outra espécie que vingue em água salgada e dê conta de alimentar as 24 pessoas que, depois da viagem sem volta, passarão a morar com ela em Marte.

US$ 6 bilhões. Como seria assentamento humano no além-Terra, nos planos do Mars One Foto: DIVULGAÇÃO

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Sonhadora, criativa e sorridente, faz alguns anos a Sandra pesquisava para seu livro (de cinco volumes) Os Antigos, quando se deparou com um site chamado Mars One. Sua curiosidade atiçou e ela entrou. Descobriu se tratar de um projeto que prometia levar 24 tripulantes para uma viagem a Marte, onde seria iniciada a primeira colônia interplanetária da humanidade. Bem louco, né, Sandra? “Sim, sim, bem louco. Inimaginável, inclusive. Só que eu não conseguia tirar isso da cabeça”. Pronto, aí você já sabe como é. A Sandra passou dias pesquisando, noites em claro, até que, numa madrugada, entre 2 e 3 da matina, teve um estalo. “Vou me inscrever. Ponto.” Afinal, durante a pesquisa, descobriu que até mesmo o professor Gerardo - ou melhor, o professor Gerardus’t Hooft, holandês laureado com o prêmio Nobel -, apoiava a plausibilidade do projeto Mars One.

Desde a fatídica madrugada, Sandra vem se acostumando e acostumando os outros à ideia. Como não tem marido ou filho, pelo menos o trabalho de convencer a família foi menor, mas não mais simples. Apegada demais aos familiares, tem dificuldade de imaginar uma existência sem eles, dificuldade que, no entanto, vem se treinando a deixar de sentir, já que, se tudo der certo, para falar com o pai ou com os irmãos a partir de Marte, vai ter que enfrentar um delay de 17 minutos, coisa que nem um Skype usando internet discada seria capaz. Afora isso, a vida da Sandra está assim: ela faz parte de um grupo de 100 pessoas de todo o mundo (é a única brasileira) que concorrerão aos 24 bilhetes de embarque à Marte, marcados para 2026. A rotina, por enquanto, não é das mais pesadas: muita aula de inglês para se entender com os prováveis futuros colonizadores e as experiências com as branchonetas, que ela explica serem uma fonte de proteína impressionante.

Só que se tudo der certo para a Sandra e ela passar nos próximos testes - que incluem um período de vivência em isolamento total com outros integrantes do grupo -, mesmo assim tudo pode dar errado. É que o Mars One tem sido bem questionado pela comunidade científica. O engenheiro brasileiro da Nasa, Nilton Rennó, um dos desenvolvedores e monitores do robô Curiosity, que há três anos tem saracoteado por areias marcianas, enviando até selfies para a Terra, diz numa risada que o Mars One é cool, mas que não acredita que vá decolar. Segundo ele, o orçamento de U$ 6 bilhões que foi calculado para a jornada sair da web, não dá nem pro cheiro. Isso não quer dizer, no entanto, que um outro projeto privado não possa ser bem sucedido, que isso fique bem claro. Agora, falando mais sério, uns alunos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, famoso MIT, fizeram um estudo dizendo algo assim: se o Mars One for levado em frente, os valentes pioneiros terráqueos morrerão de sede e sufocados em 68 dias.

Todas essas opiniões contrárias ainda não existiam quando 200 mil pessoas se inscreveram, junto com a Sandra, para participar do projeto. Mas não seria estranho se, caso as inscrições fossem abertas hoje, o Mars One tivesse até mais adesões. Para o psicanalista Christian Dunker, da USP, a motivação para uma empreitada dessas é algo antiga do comportamento humano, tipo coisa de Colombo, Marco Polo e Ulisses. “A coisa é doida, mas não é tão nova assim”, diz. Adicione-se a isso o fato de que, segundo ele, na famosa pós-modernidade uma de nossas maiores ambições é sermos sujeitos de experiências únicas, maravilhosas, singulares (vide o número de selfies que se reproduz diariamente), e pronto: temos 200 mil inscritos para uma viagem controvertida e só de ida a um planeta distante.

A Sandra, assim como os 100 selecionados até o momento pelo Mars One, está, por assim dizer, tocando a nave. O sonho continua igual, a crença de que o negócio vai pra frente também. Afinal, por enquanto eles nem começaram a treinar de verdade, sabe-se lá o que vai acontecer amanhã e, se for o caso, ainda dá para os 100 pularem fora de uma vez. Gente é que não vai faltar para repô-los. Só mais uma questão adicional, analisada por um grupo de cientistas do qual Rennó faz parte, pode impor ainda mais complicações para o plano do Mars One. É que uma nave ou um terráqueo chegando em Marte pode contaminar ou acabar matando alguma forma de vida que, porventura, exista na água salgada do planeta. A preocupação não é brincadeira, tanto que até os próximos passos do robô Curiosity estão sendo colocados em xeque. O problema agora é que talvez tudo que aterrissar em Marte deve estar devidamente esterilizado. E esterilizado de verdade, em altas temperaturas. Não vai adiantar os 24 do Mars One levarem álcool gel.

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