Stella Manhattan, de Silviano Santiago – escritor que venceu recentemente o prêmio Jabuti de Romance com Machado, uma ficção sobre os últimos anos de Machado de Assis –, é um romance híbrido e metacrítico, uma obra que prenuncia, projeta e embaralha os caminhos de sua própria recepção. Sulcando a narrativa pelas mais diversas veredas, deparamos com digressões (ou melhor, com ramificações) que nos incitam a imaginar a argila da ficção em pleno processo de moldagem. Conforme nos revela uma das vozes narrativas (e/ou ensaísticas) do livro, “como são falsos os romances que só transmitem a continuidade da ação, mas nunca transmitem a descontinuidade da criação”.
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A forma polissêmica de Stella Manhattan se comunica a (e é municiada por) seu conteúdo ontologicamente andrógino e ambíguo: o protagonista Eduardo da Costa e Silva, que também vivencia a alteridade de Stella Manhattan, é um funcionário de baixo escalão na embaixada brasileira de Nova York, durante o período de nossa última ditadura militar. O exílio de Eduardo Manhattan contra a homofobia de sua família foi mediado pelo coronel Valdevinos Vianna, amigo do pai de Stella da Costa e Silva e adido militar junto à embaixada – à noite, o coronel veste uma farda de couro e esgueira sua homossexualidade coercitivamente enrustida pelos recantos sadomasoquistas da Big Apple.
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Vizinho de Eduardo, o cabeleireiro cubano, homossexual e anticastrista Francisco Ayala, o Paco, acredita (ele crê porque é absurdo?) que a religião institucional lhe possibilita lidar com o pecado de maneira a acolhê-lo.
Professor da Columbia University, membro de uma célula guerrilheira com ramificações em Nova York e ex-colega de Stella no curso de Letras no Rio de Janeiro, o bissexual Marcelo já fora bem casado, mas agora, além de tramar contra a ditadura, ele sai com Rickie, com quem Eduardo se envolveu e por quem Stella está apaixonada.
Também professor da Columbia University, anticomunista encarniçado, defensor da ditadura militar no Brasil e paralisado em sua cadeira de rodas, Aníbal só consegue se excitar enquanto vê sua bela esposa Leila, da janela de seu apartamento, a caçar homens viris pela Quinta Avenida.
Vemos, assim, que Stella Manhattan desdobra a identidade fluida das personagens – a fluidez como ontologia. Mais uma vez, uma voz metacrítica (e política) em meio à obra procura devassar a ambiguidade como a medula (a semente, o sêmen) do ser: “Aparentemente, o protagonista do romance se divide em dois: o jovem Eduardo e a atrevida Stella. Na verdade, se divide em três, já que importa é o lugar da intersecção de um no outro, do Outro no Um. Importa o eixo cilíndrico da dobradiça que destranca e vai abrindo a porta Stella até então reprimida pela rigorosa esquadria de nome Eduardo. Computa-se o três – a ‘diferença simétrica’ entre dois, como se diz na teoria dos conjuntos, entre Eduardo e Stella”.
Em mais uma das capilaridades desse romance com vários centros e nós a serem (des)atados, desponta uma reflexão peculiar sobre o sentido da arte em meio a uma sociedade formada, conformada e deformada pelo reinado de tudo aquilo que precisa ser útil. Assim, em mais uma tomada de posição política (e metacrítica), uma das vozes romanescas nos diz que “a arte não é nem pode ser norma, é energia desperdiçada mesmo, é alguma coisa, uma ação, por exemplo – não importa agora a questão da qualidade –, que a energia humana produz num rompante e que transborda num vômito pelo mundo do trabalho, pelo universo do útil, com a audácia e a inépcia de alguém que, ao despejar leite numa xícara para se alimentar pela manhã, deixa que a maior parte do líquido se desperdice pela mesa”.
Com um ímpeto ecumênico a transcender a dicotomia dogmática da guerra fria – precisamente o contexto histórico pelo qual se esgueira Stella Manhattan –, o narrador/ensaísta nos diz que, “dentro da sociedade atual, capitalista ou comunista, a única maneira de se revoltar contra o regime de trabalho, contra o elogio do trabalho a todo custo, da competitividade, da meritocracia, é fazer uma arte que seja desperdício de energia”.
Ora, o corpo que chega ao orgasmo, em suas várias metamorfoses, é, antes de mais nada, o corpo que, em nossa sociedade, precisa trabalhar. O corpo que chega ao orgasmo artístico dá à luz uma atividade desprovida de utilidade efetiva, uma atividade como um fim em si mesmo – a arte, então, conteria um germe intrinsecamente rebelde que poderia projetar a imagem de uma sociedade emancipada, a imagem de uma sociedade liberta da coerção do trabalho, a imagem de uma sociedade que estimularia (e enalteceria) o desperdício de energia, em suas várias metamorfoses, como a expressão da(s) busca(s) por sentido(s).
É assim que Stella Manhattan desponta como um romance contestador e atual, sobretudo se considerarmos algumas tendências neoautoritárias que pretendem fardar e amordaçar a fluidez da diferença. *Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com estágio doutoral na Northwestern University (EUA)