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Versos de Annita Costa Malufe dialogam com poeta Ana Cristina Cesar

Novo livro da autora, 'Um Caderno para Coisas Práticas', trata do esquecimento como questão fundamental

Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:
A poeta carioca Ana Cristina Cesar é inspiração para Annita Costa Malufe, que escreveu dois livros sobre sua obra Foto: Instituto Moreira Salles/Divulgação

“As lembranças são necessárias, mas para serem esquecidas, para que nesse esquecimento, no silêncio de uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a primeira palavra de um verso”. A frase do pensador francês Maurice Blanchot parece ser a pedra angular do novo livro de poesia de Annita Costa Malufe, Um Caderno para Coisas Práticas, que se ergue sobre o constante esquecimento da autora: “nada melhor/ do que a memória mas aí já/ é tarde demais não me lembro/ de nada não sei ter memória vida/ toda aprendendo a combater/ vida toda para esquecer ”. 

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É de Blanchot, citado pela autora em seu livro, a seguinte afirmação: “o esquecimento, em cada acontecimento que se esquece, é o acontecimento do esquecimento”, de modo que ele “ergue a linguagem em seu conjunto reunindo em torno da palavra esquecida”, ou das imagens esquecidas, como de fato ocorre na poesia de Malufe: “imagem em vias de sumir/ seu rosto pulverizado pelo tempo/ ou bichos que comem papel fotográfico/ excesso de zoom pixelando o seu rosto”.

O esquecimento faz com que a voz se torne hesitante, “é como/ se tivesse sido ontem ou/ na semana passada/ tenho pressa de/ acabar pensando bem talvez/ não tenha pressa”. Mas a fala luta contra o esquecimento, fala para não poder esquecer, como diz Blanchot.

Essa hesitação na fala, que diz se desdizendo, assemelha-se à escrita de Ana Cristina Cesar, outra referência literária de Annita Malufe, que vem pesquisando e escrevendo sobre a poeta carioca há vários anos. Em A Teus Pés, de Ana Cristina, lê-se: “Trilha sonora ao fundo / Agora silêncio/ / Eu tenho uma ideia./ Eu não tenho a menor ideia./ / Muito sentimental./ Agora pouco sentimental./ / Esta é a minha vida./ Atravessa a ponte”.

Vale lembrar que o esquecimento acentua essas contradições, pois ele desorienta o sujeito, deixando-o sem pouso -- “não estou em parte alguma/ preciso voltar só não/ sei muito bem para onde” – e sem identidade -- “não estou aqui é muito/ claro os fios que regem esses/ braços e pernas são finos/ quebradiços prestes a/ se romper sou um/ ventríloquo títere não sou o que se enxerga daí”, conforme reiteram os versos de Malufe.

A autora deixa claro que não sabe quem fala em seu livro, já que ela nunca está “completamente presente há/ sempre algumas vozes a mais que/ me dividem elas me puxam ou/ empurram há uma confusão/ de vozes uma disputa de/ vozes que dividem o meu corpo nunca/ estou completamente aqui”. Talvez a voz de Malufe se confunda com as vozes que lhe servem de referência e que ela elenca ao final de seu livro: além de Maurice Blanchot e Ana Cristina, Samuel Beckett, Manoel Ricardo de Lima, Heitor Ferraz, Alberto Caeiro, Donizete Galvão etc. 

Os primeiros versos de Um Caderno Para Coisas Práticas não sugerem porém o esquecimento, mas o seu contrário, por meio de um inventário: “listas e mais/ listas os objetos os livros os/ verbos os números tanto faz/ contanto que esteja tudo devidamente listado”. Aliás, o próprio título do livro remete a uma espécie de arrolamento infinito. Mas o inventário aos poucos se transforma num diário, no qual o esquecimento é registrado: “talvez tudo tenha acontecido/ no início do mês antes/ eu estava bem ela vinha de quinze em quinze me/ ajudava nas compras isso foi/ antes de tudo acontecer ”; um diário à moda, diria, de Ana Cristina Cesar.

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Não pense o leitor que encontrará algum segredo da autora nessas páginas. Caberia dizer sobre o diário de Malufe aquilo que ela mesma afirmou acerca do diário de Ana Cristina: “Os diários de Ana então não revelam confidências, mas distorcem, deformam a linguagem confidencial, que seria tão franca e direta, fazendo-a repleta de arestas, de incompletudes”. Se a poesia de Ana Cristina está cheia de reticências, de três pontinhos, a de Malufe está cheia de silêncios beckettinos, pois “a boca está cheia de areia”, e por mais que se gesticule, o gesto é “indecifrável”. 

Definiria talvez a poesia do esquecimento de Anitta Malufe com uma afirmação de Ana Cristina Cesar: “A limpidez da sinceridade nos engana, como engana a superfície tranquila do eu. A literatura mexe com essa contradição: desconfia da sinceridade da pena e do cristalino das superfícies; entra a fingir para poder dizer; nega a crença na palavra como espelho sincero– mesmo que a afirme explicitamente. Finge o que deveras sente, já se disse. O Romantismo, por sua vez, põe em cena essa discussão: quem é esse eu lírico que se derrama em versos? Será sincero? Reflete o Autor? Mascara?”. Essas perguntas ficam sem resposta na poesia de Malufe, que sabe muito bem que o eu sem memória é uma “massa amorfa” que substitui o rosto do poeta.

*Autora, entre outros, de 'Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo', da editora Iluminura

Capa do livro 'Um Caderno para Coisas Pr?ticas", da poeta Annita Costa Malufe, publicado pela Editora 7 Letras Foto: Divulgação

'Um Caderno para Coisas Práticas' Annita Costa Malufe Editora 7 Letras 104 pág. R$ 34

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